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Harrison e a ditadura militar de 64

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31/03/2019 – 07h28

“Comunistas por aqui eram poucos, a maior parte, trabalhistas, tanto quanto Harrison”

Se você procurar no Google por Harrison de Figueiredo vai encontrar como resposta que se trata de um conjunto habitacional da cidade de Dourados. Mas não fica explícito que Harrison foi um cidadão douradense, advogado, dedicado às causas sociais, defensor da reforma agrária, militante político com fortes laços ideológicos ligados a Leonel Brizola e Getúlio Vargas.

Ouvinte da Rádio Mayrink Veiga [antes que fosse tirada do ar já no dia 1º de abril de 1964], Harrison reunia companheiros em sua casa para escutar e atualizar-se com Leonel Brizola e as suas inflamadas defesas à política de seu cunhado, o presidente João Goulart.

Em 1996/97, coordenei um grupo de pesquisas no CEUD/UFMS, hoje UFGD, que recuperou Memórias de Pioneiros, A passagem da Coluna Prestes por Dourados, A Usina Velha, Violência contra a mulher, as Ressonâncias do Golpe Militar de 1964 na cidade de Dourados, dentre outras. Sobre o Golpe de 1964 foram gravadas e transcritas 42 fitas cassete com depoimentos de pessoas que viveram àquela época, a maior parte delas tendo sofrido de alguma forma as perseguições da ditatura. Juntando todos os temas foram centenas de depoimentos que se encontram arquivados no Centro de Documentação Regional da UFGD.

Muita gente pensa que o golpe de 1964, não atingiu Dourados, mas na verdade alcançou todas as partes do território nacional. Minha intenção é organizar os depoimentos sobre 1964 e transforma-los em livro que demonstre porquê devemos repudiar todo e qualquer movimento laudatório à ditadura, mas enquanto isso não ocorre tomo a liberdade de transcrever um pequeno trecho do longo depoimento que nos deu Harrison de Figueiredo.

Antes, porém, faço um parêntese para realçar que, via de regra, as ditaduras, e não foi diferente com a implantada em 1964 no Brasil, encontram dentre a população pessoas que se encantam com elas e as louvam, e tornam-se também algozes. Na região de Dourados muitos fazendeiros, punham à disposição da polícia suas caminhonetes, seus caminhões, iam eles próprios, prender os seus desafetos alegando que eram comunistas. Comunistas por aqui eram poucos, a maior parte, trabalhistas, tanto quanto Harrison.

” …nossos companheiros foram presos por fazendeiros, exatamente aqueles que diziam assim: tem que prender ele, esse cara ia tomar a minha fazenda e assim nós fomos bater nas grades … eu experimentei a minha primeira prisão, o meu primeiro confinamento foi aonde é hoje o corpo de bombeiros, ali era uma delegacia de polícia e eu fui recolhido pra lá e assim aqui deve ter sido presos aproximadamente umas 200 pessoas (..) o meu primeiro confinamento me proibiu de tomar banho por 18 dias, agora, eu não recebi torturas, sim eu não, eu só fui alvo, nós fomos alvos de torturas psicológicas, nós não fomos alvos como por exemplo os que vieram de Itaporã, de Douradina, dos que vieram do Bocajá, dos que vieram do Panambi, esses foram presos e espancados, eles vieram de joelhos dentro das carrocerias de caminhão, o caminhão correndo e eles de joelho”.

Em outra passagem Harrison de Figueiredo nos conta que “me passaram para uma sala isolada… veja bem que malandro, me colocaram junto com um traficante e esse traficante eu olhei e aí encostado ao lado dele uma carabina [para fazer medo], mas esse cidadão foi por sinal muito cavalheiro…” Depois colocaram sete pessoas na cela: “dormíamos no chão… De vez em quando retiravam um preso de uma cela próxima, duas horas da manhã e dava uma rajada de metralhadora lá fora. Uma pessoa gritava. Isso, você ouvindo uma noite, duas, três, foi um suplício evidentemente que foi uma maldade extrema, quer dizer ‘que hora vai ser a minha vez’.

A tortura física e os assassinatos durante os 21 anos de ditadura militar foram terríveis, mas a tortura psicológica também era monstruosa. Segundo Harrisson duas pessoas eram postas próxima as celas e ficavam conversando: ” essa gente, isso, é comunista, isso não tem que prender, tem que levar aqui na estrada da usina… leva por aí na usina, e mata”.

Isso é apenas um aperitivo, que eu tenha força e estômago para contar muito mais, ou, ao menos, que outros pesquisadores [a exemplo de Suzana Arakaki, que escreveu Dourados: Memórias e Representações de 1964], possam aproveitar esse acervo que, como disse, encontra-se à disposição no Centro de Documentação Regional da UFGD.

Wilson Biasotto – Professor e historiador, doutor em História, ex-vereador, autor do livro “Até aqui o Laquicho vai bem”

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