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Brasil busca recuperar espaço na América do Sul, mas Bolsonaro atrapalha

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23/06/2021 – 10h15

Sob gestão de Carlos França, Itamaraty quer dar ênfase em temas como fronteiras, integração física, estabilidade política, crescimento econômico e medidas contra o aquecimento global

O Itamaraty trabalha na recuperação do espaço perdido na América do Sul durante a gestão de Ernesto Araújo. Nas palavras de uma fonte graduada do governo, a ideia é “aposentar o debate ideológico” que por vezes se via na administração anterior, para reforçar a atuação diplomática do Brasil na região, com ênfase em temas como fronteiras, integração física, estabilidade política, crescimento econômico e medidas contra o aquecimento global. Analistas ouvidos pelo jornal O Globo, porém, apontaram que o presidente Jair Bolsonaro é um obstáculo ao sucesso dessa abordagem.

A América do Sul é motivo de preocupação do ministro das Relações Exteriores, Carlos França, por estar repleta de problemas com os quais o Brasil precisa lidar. Os exemplos são variados, e a forma como o chanceler agirá, acreditam interlocutores, mostrará ou não capacidade de implementar uma política consistente de liderança positiva dos brasileiros na região.

Há uma crise com a Argentina por causa da proposta brasileira de redução das tarifas usadas pelo Mercosul com terceiros mercados. A possibilidade de um entendimento agora praticamente não existe, e o Brasil terá de manter uma negociação com Buenos Aires ao longo do segundo semestre, quando assume a presidência temporária do bloco.

O Paraguai aguarda a revisão do acordo de Itaipu, mais precisamente a renegociação do Anexo C do tratado, que vence em 2023 e trata da comercialização e dos preços da energia gerada pela usina binacional. Em março último, ainda na gestão de Ernesto, os paraguaios foram informados de que as conversas começariam em breve, mas dependiam do controle da pandemia.

A Venezuela é uma questão bastante delicada e há quem defenda, no governo, a abertura de um canal de diálogo com o regime de Nicolás Maduro para que sejam tratados problemas de interesse do Brasil, especialmente na extensa fronteira com aquele país. Reconhecido como presidente interino por Bolsonaro, o opositor Juan Guaidó “já deu o que tinha que dar”, segundo uma fonte. Mas a possibilidade de uma aproximação praticamente não existe, pois precisaria da concordância do Palácio do Planalto — que pagaria um preço alto com essa mudança de atitude junto aos eleitores do presidente.

O Peru, até pouco tempo fechado com o Brasil contra Maduro, está em vias de sofrer uma guinada à esquerda, sob o comando de Pedro Castillo, com o qual Bolsonaro — que chegou a dizer “Perdemos o Peru” — terá de conviver, se a contestada vitória do professor sindicalista for confirmada pela Justiça peruana. Os líderes aliados de Chile e Colômbia, Sebastián Piñera e Iván Duque, respectivamente, estão passando por momentos difíceis, tanto sob o ponto de vista político como econômico.

Por outro lado, França conversará pela segunda vez com o chanceler boliviano, Rogelio Mayta, em breve. A Bolívia tem como presidente Luiz Arce, aliado do ex-presidente Evo Morales. A vitória de Arce, no fim de 2020, marca a volta do Movimento ao Socialismo (MAS) ao poder naquele país.

Os mesmos especialistas avaliam que esse movimento da diplomacia brasileira enfrenta dois fortes obstáculos: a pandemia de Covid-19, que fez com que os países da região se voltassem mais para dentro; e a personalidade do presidente Jair Bolsonaro, que prioriza relações pessoais e foge de líderes de esquerda.

— Desde o início do governo, Bolsonaro desenvolve relações que não são de Estado. São relações pessoais ditadas pela simpatia e por sua maneira de ver o mundo. Não é a forma correta de se fazer política externa —critica Daniela Campello, pesquisadora sênior do Núcleo América do Sul do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Ela destacou que esse comportamento faz com que Bolsonaro colecione uma série de resultados negativos. O presidente brasileiro se aproximou de Mauricio Macri, mandatário argentino que depois perdeu as eleições para Alberto Fernández. Esse cenário se repetiu em relação a Donald Trump, derrotado na reeleição para a Presidência dos Estados Unidos, e ao israelense Benjamin Netanyahu, retirado na semana retrasada do cargo de premier de Israel após 12 anos por uma coalizão encabeçada por Naftali Bennett.

Influência da pandemia

Para Alcides Costa Vaz, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Bolsonaro optou por fazer um mapeamento na região, ao se alinhar com os EUA na questão da Venezuela e ficar tão próximo de Macri. Em sua opinião, a América do Sul não recebeu a mesma atenção, “nem de perto”, dada por governos anteriores.

— A situação se reverteu, e a direita perdeu espaço na região. É contraditório, porque Bolsonaro foi eleito com o discurso de que era preciso desideologizar as relações na América do Sul, mas fez o contrário — disse Vaz.

O consultor internacional Welber Barral apontou a pandemia como um dos fatores responsáveis por atrasos na política externa. Para ele, o Brasil, inevitavelmente, sempre terá uma agenda grande com os países vizinhos, com fronteiras demais, interesses estratégicos e econômicos, questões migratórias, entre outros assuntos.

Já Dawisson Belém Lopes, da Universidade Federal de Minas Gerais, afirmou que o Brasil perdeu ascendência sobre os vizinhos. Segundo ele, há um novo avanço das esquerdas, o que impõe a Bolsonaro um cerco na América do Sul.

— O mais curioso é como Bolsonaro se mostrou um cabo eleitoral ruim. Mesmo em casos de vitória da direita, como no Uruguai, houve nítido esforço de Lacalle Pou para se dissociar do mandatário brasileiro — afirmou.

Pedro Miguel da Costa e Silva, secretário de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas do Itamaraty, afirmou que a América do Sul jamais deixou de ser prioridade para o governo brasileiro e que as relações com as nações vizinhas não se pautam pela ideologia. Costa e Silva ressaltou que a pandemia dificultou negociações, encontros e viagens, mas nada disso impediu a manutenção de contatos permanentes em níveis de presidente, chanceler e altos funcionários.

— Não concordo com a avaliação de que deixamos de dar atenção aos países da América do Sul, ou que a região perdeu prioridade. Estamos em um contexto em que nosso trabalho foi dificultado. Continuamos com nossa agenda, pois nossa vizinhança é prioritária — afirmou o diplomata.

Ele destacou que há uma série de projetos de interesses com os vizinhos. Com o Uruguai, citou como exemplos acordos comerciais e de infraestrutura; com a Bolívia, temas energéticos; com o Chile, o cabo transpacífico e os corredores bioceânicos; com a Colômbia, é aguardada a visita ao Brasil do presidente Iván Duque, entre outros. (Eliane Oliveira/O Globo)

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