O tempo ensina que as paixões políticas de momento levam a equívocos. Na campanha eleitoral, Lula prometeu estreitar os laços com os países latino-americanos e retomar as relações diplomáticas com a Venezuela, rompidas no início do governo Bolsonaro, que se engajou na fracassada trama de Donald Trump com o líder da oposição, o autointitulado “presidente interino” Juan Gaidó, para derrubar o governo de Nicolás Maduro. Nos quatros anos do governo Bolsonaro, o Brasil ficou sem embaixador em Caracas. O posto foi exercido por encarregado de negócios. Na campanha, Bolsonaro brandia a ameaça de o Brasil virar uma Venezuela. Eleito, Lula tratou de recuperar o protagonismo brasileiro nos fóruns mundiais, após o Itamaraty, sob o comando do chanceler Ernesto Araújo, se orgulhar de assumir a função de “pária” no mundo. Após viagens à Europa, Estados Unidos e marcar presença em fóruns mundiais antes da posse (como a conferência do Clima no Egito), passados os traumas do 8 de janeiro, o presidente Lula saiu da palavra à ação.
Em fins de maio, Lula recebeu Maduro no Brasil, na 1ª visita desde 2015. Na ocasião, foi muito criticado pelos bolsonaristas ao instar Maduro a fazer abertura política no país vizinho e cometer uma frase infeliz ao dizer que “a Venezuela tinha uma democracia relativa”. Frase semelhante foi proferida pelo general Ernesto Geisel em seu governo (1974-79). Mas Lula estava plantando as sementes para a reintrodução da Venezuela na esfera do mundo democrático e das negociações diplomáticas. Em 19 de julho, em Bruxelas, sede da União Europeia, afirmou que a Venezuela “está cansada” de brigar e que sanções dos EUA são absurdas. E acrescentou que a situação no país seria resolvida, regras para as eleições seriam estabelecidas e sanções retiradas. Uma semana depois, na Conferência dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac), realizada no Brasil, Lula terminou de costurar adesões do bloco ao levantamento das sanções americanas à Venezuela.
As negociações diplomáticas são fundamentais à harmonia entre as nações, sobretudo as que têm fronteira comum. E a realidade imposta pelas ameaças das guerras acabam mudando posições antes consideras imutáveis. Diante da suspensão do fornecimento de gás e petróleo russos diretamente à Europa, com as sanções da Otan à Rússia pela invasão da Ucrânia, com o suprimento de gás e combustíveis arcado, sobretudo, por Estados Unidos e Canadá, a situação tornou-se mais complicada, com o agravamento das tensões entre Israel e os palestinos, após as incursões terroristas do Hamas em Israel no 7 de outubro e os duros revides do primeiro-ministro Netanyahu à faixa de Gaza. Boicote dos países árabes produtores de petróleo em solidariedade aos palestinos, era o motivo da viagem frustrada de Biden ao Oriente Médio. Suspensas as conversas que teriam lugar com os árabes na Jordânia, buscando uma neutralidade, restou a Biden, cuja missão fracassada levou a representante dos EUA a vetar, na reunião do Conselho de Segurança da ONU a proposta brasileira de abertura de corredores humanitários na Faixa de Gaza. Restou a Biden abraçar Netanyahu e lhe cobrar um mínimo de moderação. A abertura da fronteira nas últimas 24 horas foi um bom sinal, após a libertação de duas americanas pelo Hamas. A situação segue muito tensa e incerta.
Mas o pragmatismo falou mais alto. O presidente Biden anunciou nesta semana a retomada das negociações dos Estados Unidos com a Venezuela. Na 5ª feira (19.10), o governo Maduro libertou cinco presos políticos da oposição. E os EUA suspenderam, por seis meses, as sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelanos. A Chevron, gigante petrolífera americana, já tinha retomado negócios no país, que tem as maiores reservas de petróleo do mundo. A produção entrou em decadência desde que o governo do coronel Hugo Chávez, antecessor de Maduro, expulsou as “majors” estrangeiras. A PDVESA, a estatal do país, entregue aos militares, não teve competência e “know-how” para explorar a riqueza. A produção encolheu em 70%, causando a ruína do país. Agora, a Petrobras, impedida, pelo Ibama de fazer sondagens na plataforma marítima do Amapá, a 180 kms da costa do Oiapoque e a mais de 500 km da foz do rio Amazonas, já está de olho no mar de Maracaibo.
Os avanços fazem parte de um acordo para a realização de eleições no país. Era um pedido antigo. Foi decisiva a intermediação do governo Lula, que tirou o Brasil da condição de “pária” internacional. Em julho, em uma reunião em Bruxelas, Brasil, França, Argentina e Colômbia pediram o fim das sanções em troca da garantia de eleições justas e transparentes na Venezuela. Nesta semana, Nicolás Maduro e a oposição do país se encontraram em Barbados (Caribe). O assessor especial da presidência Celso Amorim estava como testemunha. Saíram de lá com um acordo: tornar as eleições presidenciais da Venezuela, em 2024, mais transparentes. Uma forma de retomar a confiança no voto, disse o líder da oposição. Ou seja, conversando a gente se entende. O “business as usual” fala mais alto e ignora divergências paroquiais.
O problema é mais embaixo
O saudoso Tom Jobim tinha várias tiradas sobre o Brasil. Uma delas era dizer que “o Brasil é um país de cabeça para baixo; é só olhar no mapa e ver aquela coisa enorme, tentando se equilibrar numa pontinha fina – o Chuí”.
Pois, enquanto estamos solucionando as pendências ao Norte, onde as migrações de famílias venezuelanas aumentaram a pobreza no Amazonas e em Roraima, o que aumenta as esperanças de que a Venezuela possa, enfim, saldar a dívida com o Brasil (nem que seja em negociações triangulares com petróleo, envolvendo a Petrobras – como aconteceu com Angola, o país que mais tomou créditos às exportações de serviços feitos pelas empreiteiras brasileiras desde o fim da década de 1980, sem entrar em inadimplência), este domingo reserva grandes emoções quanto ao resultado do 1º turno da Argentina, ao Sul do país. Mais importante vizinho na América do Sul, sendo o 3º parceiro comercial do país, após os 30% da China e os 19% dos EUA), a Argentina absorve de 4 a 5% das exportações brasileiras. É o nosso maior comprador de manufaturados (excluídas as vendas de aviões e turbinas da Embraer). Após anos de rusgas nos regimes militares instalados nos dois lados da fronteira, que retardaram por quase uma década o início da construção da usina hidroelétrica binacional de Itaipu, dividida com o Paraguai, no rio Paraná, mas cujo financiamento foi bancado 100% pelo Brasil, em troca da preferência sobre o adicional da dota de 50% da energia que cabia a cada país (o Paraguai só consumia inicialmente 10% a 12%), Brasil e Argentina selaram uma paz profícua com o incremento do comércio bilateral. A escala crescente das relações gerou o Mercosul, oficializado em 1991.
Mas agora não só as relações entre Brasil e Argentina, atualmente devedor de quase US$ 2 bilhões a empresas comerciais e industriais brasileiras, como o próprio destino do Mercosul, em nome de quem Brasil e o governo de Alberto Fernández costuravam um acordo de comércio com a União Europeia, estão ameaçadas com a vitória do candidato ultrarradical de direita, que se diz liberal, anarco-capitalista (ou o que venha a ser isso) Javier Milei. Adepto da Escola de Viena, cujo expoente era Friedrich Hayek, que inspirou o Estado Mínimo de Margareth Thatcher, Milei acena com a dolarização de100% da economia para isso extinguiria o peso e o Banco Central de La República Argentina), mas sem explicar de onde viriam os dólares para um país sem reservas (o governo Fernández, que negocia empréstimo de US$ 7,5 bilhões com o Fundo Monetário Internacional, conseguiu esta semana, na Indonésia, um crédito-pontem em yuan, com o presidente da China, Xi Jinping, equivalente a US$ 6,5 bilhões, para cobrir os compromissos até 31 de dezembro. E depois?
Quem estudar a ideia da União Europeia, a união para fazer a força, verá a pequena escalada industrial da Argentina, fenômeno que atinge o Brasil (e o Reino Unido, situação agravada pela saída ruidosa da EU, com o Brexit). Quando se reuniam sob o Mercado Comum Europeu, França, Alemanha, Itália, Holanda e Bélgica perceberam que não tinham escala para enfrentar o dragão chinês. Na Grã-Bretanha de Thatcher, a privatização das minas de carvão (estatizadas nos últimos dois séculos, até por razões estratégicas de guerra) foi possível, porque o país já dispunha do petróleo e gás do Mar do Norte (que dividia com a Noruega). A pequena Noruega, com cerca de 5,5 milhões de habitantes (menor que os 7 milhões do município do Rio de Janeiro) ficou rica com o petróleo&gás e foi criando fundos para bancar transição energética em vários países (inclusive o Brasil, na Amazônia). Hoje, é uma das líderes mundiais na produção de hidrogênio verde, a partir da energia eólica, no Mar do Norte. Já a Grã-Bretanha, passado o “boom”, com o declínio da produção, entrou em crise já ao final da era Thatcher e cavou seu próprio buraco ao embarcar no discurso isolacionista de Boris Jonhson.
Incensado pelos jovens (mais atingidos, como no Brasil, pela crise do desemprego e a perda de competitividade da indústria ante a concorrência dos produtos chineses, produzidos a baixo custo e a larga escala – a economia argentina equivale a pouco mais de 25% do PIB do Brasil; seria uma Minas Gerais), a vitória de Milei é apontada nas pesquisas. Para a decisão ser efetivada neste domingo, precisaria liderar com mais de 45% dos votos válidos ou obter mais de 40% e uma vantagem de dez pontos percentuais sobre o 2º colocado. O que as pesquisas não mostram. Assim, a decisão seria no 2º turno, em 19 de novembro. A força de Milei entre os jovens não foi bem captada nas prévias de agosto. Os jovens de 16 a 18 anos, que votarão pela 1ª vez representam 1,8% do eleitorado e os da faixa de 18 a 30 anos, somam mais 25%. O cansaço da política peronista (acusada como o principal responsável pelo retrocesso da Argentina) alimenta os votos em Milei. Sua eleição representaria, a princípio, o agravamento da crise, pois não conta com base eleitoral (os peronistas, liderados pelo ministro da Economia, Sérgio Massa, e a candidata Patrícia Bullrich, ex-ministra de Segurança Pública de Maurício Macri, antecessor de Fernández, teriam mais base de apoio no Congresso). Milei promete sair do Mercosul e virar as costas ao Brasil, como represália ao presidente Lula, de quem é crítico ferrenho. O destino da Argentina está atrelado ao do Brasil e ao Mercosul.
Gilberto Menezes Cortês/Correio Braziliense
