A última vez que aconteceu foi domingo passado, quando, esgueirando-me sorrateiramente de um desses bolsonaristas fanáticos, mudei de raia para tentar concluir em paz meu treino de natação no Indaiá. Um pretenso candidato a vereador a mim apresentado por um colega de natação apaixonado pelo vice-governador Barbosinha veio com a pergunta que não me canso de responder: você é de Dourados? Inspirando-me sempre na promessa de meu saudoso amigo Isaac Duarte de Barros Jr., de mandar erguer um monumento ao “único índio branco nascido no Jaguapiru”, depois de meu desencarne, mais ou menos por ali onde o ex-prefeito Murilo Zauith “escondeu” a estátua do presidente Getúlio Vargas, no trevo do Anel Viário Norte, respondi, como sempre faço, de supetão: “douradense do Jaguapiru, com muito orgulho”.
Quando nasci Dourados era ainda uma típica corrutela, lembrando a fictícia Macondo, onde se passa toda a história da família Buendía, do prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Marquês, narrada no livro Cem anos de solidão. A parteira vó Vicenta saiu de charrete da Cabeceira Alegre, atravessando uma picada aberta pelo prefeito Carvalhinho, passando pelo bolicho de tio Arlindo Borba, onde hoje é a serraria dos Artuzi, para atender a Dita, minha mãe, e dar o primeiro tapa em meu traseiro. Dona Elvia da Silva Melo era das famílias Urbano, do Guassu, e Viana, do tio Nenê, oficial de justiça e porteiro do Cine Ouro-Verde). Meu pai, Waldemar da Silva Melo (da parte pobre dos Azambuja e dos Machado do deputado Londres, do saudoso advogado Lauro e do médico Luiz Machado), naquele 30 de junho de 1954 decerto assoviando mais que o de costume e acendendo um cigarro Continental atrás do outro, no intervalo de generosos goles de pinga Tatuzinho.
Minha infância foi toda na Cabeceira Alegre. Do sucessor de Carvalhinho, o médico Nelson de Araújo, cresci ouvindo as histórias de que pagava as contas da prefeitura com dinheiro do próprio bolso e que morava numa casa nas próximo ao hospital da Missão Caiuás para melhor atender aos índios. As histórias de seu sucessor, o mineiro udenista Antônio Moraes dos Santos (para mim em quem Walcir Carrasco se inspirou para criar o personagem Antônio de La Selva, de Terra e Paixão), na contramão de dr. Nelson saído da prefeitura para se eleger deputado e se consolidando como um dos maiores latifundiários do estado, prefiro deixar para meu terceiro ou quarto livro, já que, atropelado por um infortúnio, resolvi fazer um atalho, postergando providencialmente mais uma vez o lançamento do segundo, esperando a roda do tempo, para me adiantar na história do filho do seu Quinzito, José Elias Moreira, livro que pretendo lançar antes das eleições de 2024.
Em 1958, numa casinha em frente à escola Abigail Borralho, chegou meu irmão Vivaldo da Silva Melo – o produtor musical, um dos criadores do Fempop e radialista Ézio Moreira, hoje pastor presbiteriano em Castanheira, no nosso velho Mato Grosso. O nome Vivaldo, uma homenagem de meu pai, petebista de quatro costados, ao sucessor de Moraes na prefeitura, Vivaldi de Oliveira, o prefeito trabalhista passado à história como o “pai dos pobres”, que ao deixar o mandato entregou uma carta aos vereadores autorizando quem quer que fosse da população a ter acesso ao que hoje se conhece como abertura de sigilo bancário. Por seu trabalho social Vivaldi foi eleito deputado estadual mais votado daqueles tempos bicudos, mas abandonando a política ao final do mandato por um chamado, em tom de advertência, da espiritualidade. Desencarnou rodando pela cidade num corcelzinho velho.
Na sequência, o primeiro prefeito dos anos de chumbo da ditadura, Napoleão Francisco de Souza ficou famoso mais por sua condição de juiz de futebol que apitava os jogos de várzea, já na LEDA (“estádio” que leva seu nome) com um “trezoitão” no cinto do que por sua postura dúbia em relação ao regime que se inaugurava no país. Ou seja, um militante do PSD, partido da mesma linha ideológica do PTB de Getúlio Vargas, mas fazendo o jogo dos milicos, o que facilitou a ascensão de um trabalhista mais autêntico, João Totó Câmara, o maior líder político que a terra de seu Marcelino já teve, mas também predecessor de Zé Elias no quesito “fazeção” de obras.
Foi nessa época, com Totó prefeito e Pedro Pedrossian governador (do Mato Grosso uno) que Dourados conheceu asfalto. Começou pela minha Cabeceira Alegre, Marcelino Pires acima, entre as ruas Maria da Glória e Coronel Ponciano. Ainda guri, vi o piche começando a ser espalhado sobre uma densa base de três ou quatro camadas do que parecia ser pedra brita e pedregulhos antes do pavimento asfáltico, muito diferente do hoje famoso asfalto casca de ovo que “propicia” as infindáveis operações tapa-buracos, fonte inesgotável de corrupção, de sobejo aqui lembrada por este colunista démodé.
Foi com Totó Câmara que me enfronhei oficialmente na política. É que antes de ser nomeado seu assessor de imprensa, já no último ano de seu segundo mandato, tive meu primeiro contato com um candidato: Walter Benedito Carneiro, que disputava sua primeira eleição de vereador, pedindo votos para seu cunhado Zé Elias, candidato a prefeito. Contra o mesmo Totó. Nessa época, depois de iniciado no jornalismo na Folha de Dourados, estava de passagem pela Gráfica Rei, dos irmãos Edson e Rikio Higashi. Daí para o “glorioso” Exército Brasileiro, como artilheiro, contemporâneo de Jair Bolsonaro, ele no nono (Nioaque), eu no décimo GCAN (Campo Grande). Lá iniciei no rádio, na PRI-7, Difusora. De lá, para a gloriosa Rádio Clube de Dourados, de Jorge Antônio Salomão, o prefeito que governou Dourados no intervalo dos dois mandatos de João Totó Câmara, daí repórter e redator de O Progresso, Panorama, Folha de Londrina, Folha de S. Paulo, quatro passagens pela TV Morena, onde fui de repórter a diretor de jornalismo no estado, mesma função ocupada por um curtíssimo período na TV Caiuás.
Prefeito José Elias Moreira. Que saudade! Coube ao filho de seu Quinzito revolucionar a administração douradense. No período de transição para a criação do Mato Grosso do Sul, o prefeito que dizia preferir enterrar tubos do que enterrar vidas, referindo-se ao início do grande trabalho de implantação de obras de saneamento básico, como redes de galerias de águas pluviais e de esgoto, além de pavimentação asfáltica e escolas. Já “administrava” antes mesmo de ser prefeito, pois que como diretor da Planoeste foi ele quem resolveu o problema habitacional de Dourados, implantando os conjuntos BNH’s I, II e III planos, depois, como prefeito, o IV Plano. Tão competente política e administrativamente que elegeu o sucessor, Luiz Antônio, na mesma eleição em que se candidatou a governador, a primeira eleição do estado, concorrendo com Wilson Barbosa Martins, ganhando em todo o interior, mas perdendo na capital.
Sempre, o ofício de jornalismo se confundindo com a política, ora como assessor de imprensa ora como marqueteiro (depois de Totó Câmara fiz campanha e assessorei os prefeitos Luiz Antônio Gonçalves, Braz Melo, Humberto Teixeira e meu professor Laerte Tetila). Nesse entremeio, assessorando Zé Elias na Constituinte e parte de um dos mandatos de Valdenir Machado na Assembleia Legislativa. Ah, uma exceção, já que o dito cujo era excepcional, mais no sentido de excentricidade e extravagância – este sim, um mito, Ari Valdecir Artuzi, em cuja campanha de prefeito dei o pontapé inicial como marqueteiro.
Depois do fenomenal Artuzi, assisti, apenas as duas campanhas e as duas administrações de Délia Razuk, e a que ficou espremida entre estas, a de Murilo Zauith, reeleito depois de um mandato-tampão. Prefeito que veio para quebrar paradigmas, mas cuja visão de empresário bem sucedido se limitou ao esticamento do perímetro urbano para atender mais aos interesses dos especuladores imobiliários do que, propriamente, às exigências da ainda ociosa ocupação urbana.
Das administrações em que participei sou suspeito de falar, principalmente da primeira de Braz Melo, de quem ganhei uma revista de suas realizações com a dedicatória: “ao meu amigo Valfrido, que me ensinou o caminho do céu”. O “CEU” do Braz, em que o timoneiro de nossa Constituição, Ulysses Guimarães, disse ter tido o prazer de conhecer, como que numa premonição de quem desaparecia no mar anos depois, sem deixar pista, vítima de um acidente de helicóptero. Além do céu, Braz também deu sua mão para que Dourados não fique jamais desamparada.
O que falar de Alan Guedes? Pela ótica de seu guru, o colunista social Alfredo Barbara Neto, estamos, ainda, “de olho”. E não apenas com os dois olhos, mas com quatro, bem abertos, como sugere o emoji da logomarca da prefeitura, comemorativa aos 88 anos de Dourados. Só para não perder a oportunidade de fazer o contraponto, razão de ser da já prolongada passagem terrena do “índio branco do Jaguapiru”.
