Do seu gabinete no 3º andar do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, observa algumas pessoas tirando fotos na Praça dos Três Poderes. Há dois meses, o magistrado retirou, junto com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a maior parte das grades que ainda cercavam o prédio. Foi um gesto simbólico para representar a superação de um momento no qual o Judiciário foi alvo de ataques, cujo ápice da barbárie culminou nos atos golpistas do dia 8 de janeiro. Agora, Barroso avalia que o STF precisa dar respostas às investidas antidemocráticas:
— Se a Justiça não reage de maneira adequada, nas próximas eleições o grupo que perder vai achar que pode fazer a mesma coisa — afirma o presidente do Supremo, em entrevista ao jornal O Globo.
O senhor assumiu a presidência do STF em meio à tensão entre Judiciário e Legislativo, marcada pelas votações do marco temporal, da descriminalização do porte da maconha e da retomada do foro privilegiado. Como vai contornar esse conflito de pautas?
Eu não acho que haja conflito. A democracia não é o regime político do consenso. A democracia é o regime político em que a divergência é absorvida de maneira civilizada e institucional. Portanto, é possível que, em relação a alguns temas, parte do Congresso tenha uma visão diferente do que tenha sido decidido pelo Supremo. Não acho que haja crise, tensão e desarmonia. Há, por vezes, visões diferentes. Mas até nos bons casamentos, às vezes, as pessoas têm visões diferentes. Acho que o país vive um momento de repacificação institucional, e eu tenho me empenhado por isso. Só existe pensamento único em ditadura.
Quase seis anos depois de restringir o foro privilegiado, o STF está revisitando o tema. Isso não deveria ser assunto do Congresso?
O que estamos discutindo é se depois de deixar o cargo deve ou não continuar o foro. Quem interpreta a Constituição é o Supremo. Vejo com naturalidade o fato de o tema estar sendo discutido no Congresso, onde se debatem as questões públicas. É normal que no Congresso existam visões que concordem com o Supremo e que divergem.
Uma pesquisa do Datafolha mostra que a reprovação ao trabalho do STF caiu 10 pontos entre dezembro de 2023 e março de 2024. Isso tem relação com a investigação da suposta trama golpista?
É possível que a próxima pesquisa diga que caiu a popularidade do Supremo. Depois, vai ter outra que vai dizer que subiu. Não podemos medir o mérito do tribunal pela popularidade aferida em opinião pública. O Supremo no Brasil tem um papel um pouco diferenciado em relação às Cortes constitucionais do mundo. A Constituição brasileira cuida de muito mais temas que as constituições de uma maneira geral. Pelo fato de quase tudo poder chegar ao Supremo, podemos desagradar algum setor importante da sociedade. Por isso, o mérito de um tribunal não pode ser aferido em pesquisa de opinião pública.
Em 2022, quando foi hostilizado por um apoiador de Jair Bolsonaro em Nova York, o senhor falou: “Perdeu, mané, não amola”. Esse tipo de reação afeta a imagem do STF?
Passei três dias em Nova York sendo seguido pelas ruas por pessoas gritando todos os palavrões que se possa imaginar e alguns que eu nem conhecia. Eu tive uma reação para demonstrar que sou humano. Naquele mesmo período, a minha filha estava estudando nos Estados Unidos, e eles tinham invadido o telefone dela com grosserias e barbaridades. Quando atinge a família, causa um tipo de aborrecimento um pouco diferenciado. Alguém me perguntou: “O senhor se arrepende?”. Absolutamente não. Mas lamento.
O senhor foi alvo de críticas no governo Bolsonaro. Qual foi o momento mais difícil?
O pior momento foi o risco da volta do voto impresso, porque sempre achei que ali estava o germe do golpe, a volta ao modelo fraudulento de eleições para poder alegar que houve fraude. Achei que era uma batalha de quase vida ou morte pela democracia brasileira. Me empenhei muito para que não passasse a volta ao voto impresso. Não cometi ativismo legislativo, como eles disseram, porque eu fui ao Congresso convidado.
O senhor se arrependeu de ter chamado as Forças Armadas para integrar a comissão de transparência eleitoral do TSE em 2022?
Tem uma frase de uma peça do Shakespeare que diz: “Tudo bem quando acaba bem”. Eu não me arrependo, porque deu tudo certo. O próprio relatório das Forças Armadas foi no sentido de que não acharam fraude nas urnas. Mas, infelizmente, tiveram um comportamento desleal, porque foram convidados a ajudar e dar transparência, mas estavam vazando informações. Lealdade é um valor que se ensina nas Forças Armadas. O que aconteceu ali foi a prova do que uma má liderança pode fazer com uma instituição. Mas as Forças Armadas, no momento decisivo, não embarcaram no golpe.
Há indícios de que o ex-presidente comandou essa trama golpista?
Processo, para mim, é prova. Portanto, o processo ainda não chegou ao plenário do Supremo. Não tenho opinião sobre isso e, mesmo que tivesse, jamais a anteciparia.
Um dos instrumentos que o STF usou para combater esses ataques é o inquérito das fake news, que tramita há cinco anos. Esse tempo é excessivo?
Não é o inquérito que tem se prolongado indevidamente, mas são os fatos que, infelizmente, têm se multiplicado e aparecido ao longo do tempo. Eu tinha a expectativa de que quando acabássemos de julgar os casos do 8 de Janeiro, naturalmente, o inquérito caminharia para uma conclusão. Mas aí veio a questão da articulação de um golpe de Estado. Isso é muito grave.
Qual resposta o STF dará para a suposta trama golpista?
Se a Justiça não reage de maneira adequada, nas próximas eleições o grupo que perder vai achar que pode fazer a mesma coisa. Ou se nós não enfrentamos a tentativa de golpe, o próximo que perder também vai achar que pode articular um golpe. O Direito tem esse papel dissuasório de novos comportamentos ilícitos.
As plataformas foram utilizadas como canal de proliferação de notícias falsas. O STF deve retomar o julgamento sobre a regulação da atuação das big techs?
Preciso saber dos relatores se estão preparados para julgar. A verdade é que, como o Congresso não conseguiu superar o impasse para editar essa legislação, o Tribunal Superior Eleitoral editou resoluções em matéria eleitoral. Quando o Congresso não consegue chegar a um consenso ou produzir maiorias suficientes, a matéria fica em aberto, e o Judiciário precisa atuar. É muito possível que isso venha a ser julgado no Supremo.
Há dúvidas sobre a aplicação do entendimento do STF quanto à responsabilização de empresas de mídias por divulgarem entrevistas com falsas acusações. De que forma o STF garante que a liberdade de expressão não será violada?
O STF tem sido um grande defensor da liberdade de expressão, atuando contra todo o tipo de censura, inclusive a judicial, quando feita pelas instâncias inferiores. Este é um precedente que vale apenas para o caso em que haja dolo muito grande do entrevistado e uma negligência muito grande do órgão de imprensa. É uma combinação que não é a mais comum. Na formulação da tese, eu vou conversar com o Tribunal para deixar isso exposto com o máximo de clareza possível.
O senhor já expressou apoio à Lava-Jato, que está na mira de uma investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pelo senhor. Como pretende lidar com esse tema?
A minha posição sempre foi e continua a ser contra a corrupção. Acho que houve coisas positivas e erros na Lava-Jato. Alguns erros eu sempre pontuei de longa data, como o vazamento da conversa telefônica da então presidente Dilma Rousseff com o presidente Lula e a condução coercitiva do presidente para depor, quando ele não tinha se recusado a comparecer. Eles tinham certa obsessão pelo presidente Lula. Continuo achando que a corrupção é um problema não apenas pelo desvio de dinheiro, mas também pelas decisões erradas que se tomam com base nela.
O senhor tem capitaneado a questão da paridade de gênero nos tribunais. No STF, só há uma mulher entre os 11 ministros. Como isso pode mudar?
O CNJ aprovou uma resolução para estabelecer que quando um homem for promovido uma mulher deve ser a próxima, até se chegar a 40% de participação feminina na composição. São Paulo foi o primeiro estado a implementar isso, por uma decisão do presidente do tribunal, que fez um edital apenas para mulheres. O Supremo, no entanto, não está sujeito às regras do CNJ. É um tribunal de escolhas políticas. Eu gostaria que houvesse mais mulheres no STF. Espero que esse seja o quadro que se desenhe para o futuro.
Mariana Muniz, Daniel Gullino e Thiago Bronzatto/O Globo — Brasília