Inquieta com a estridência do debate que tomou conta do Brasil com a polarização política entre direita e esquerda, a deputada Gleice Jane parece decidida a dar uma aula sobre conservadorismo – tanto de direita quanto de esquerda – a seus colegas de plenário. Foi assim, por exemplo, no debate esta semana sobre o polêmico Projeto de Lei antiaborto por estupro. Enquanto deputados de vários partidos se revezavam em debate raso sobre o tema, com base em notícias da imprensa, mas sobretudo tentando faturar politicamente, com seus “ideais” direitistas e esquerdistas, Gleice foi fundo na questão, coerente com as bandeiras que defende, entre as quais a incessante luta pelos direitos das mulheres, com ênfase para o combate ao feminicídio.
Nesse sentido, a deputada petista fez um registro de momentos históricos, desde a inquisição até a eleição de Dilma Roussef, em que as bandeiras das mulheres receberam os holofotes midiáticos como forma de evitar a discussão das pautas importantes para o País. “Nunca foi sobre a vida, sempre foi uma imposição sobre o que a mulher tem que vivenciar. Mais uma vez esse debate vem à tona no momento em que tem outras pautas importantes. Querem penalizar as vítimas de violência sexual, especialmente as meninas. Querem o controle dos nossos corpos, querem nos tirar o direito de debater sobre outros temas, como as reformas econômicas”, disse.
Nascida em São Bernardo do Campo, berço do sindicalismo que produziu o fenômeno Lula, criada em Mundo Novo, onde acompanhou a trajetória de Dorcelina Folador – a sem-terra e ativista política assassinada durante o segundo mandato como prefeita da cidade – a também ativista Gleice Jane mudou-se para Dourados, dedicando-se ao magistério, que ela entende como um sacerdócio. “Antes de ser deputada, sou professora, e é assim que gosto de ser reconhecida”, fez questão de enfatizar no dia seguinte, para repercutir o debate, durante entrevista ao vivo ao radialista Jackson Pereira, no programa Jornal da Hora.
Foi nesse tom professoral que a deputada Gleice Jane conversou com o ContrapontoMS, na última terça-feira, em seu gabinete, mostrando preparo para colocar em seus devidos lugares os autodenominados conservantistas, preparo que vem da militância com a turma de professores responsável pela implantação da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), entre eles seu idealizador, Wilson Valentim Biasotto e seu inseparável companheiro José Laerte Cecílio Tetila. Ao citar o nome de Tetila, ela aproveita para fazer um reparo ao que aqui é sempre colocado em relação à galeria dos ex-prefeitos de Dourados. Para ela Tetila foi o melhor de todos. “Um intelectual da maior grandeza, um humanista, o prefeito que convenceu o presidente Lula a implantar a UFGD, que cuidou da cidade como se fosse sua casa; do povo como se fosse sua família, por isso mesmo o único até hoje reeleito para um segundo mandato consecutivo”.
Convivendo com uma doença rara, a síndrome de Guillan Barré, que ataca o sistema nervoso, Gleice Jane vê com preocupação o debate histriônico em torno do que se convencionou chamar de conservadorismo. “Será que essa galera sabe o que está dizendo? Será que estamos vivendo num paraíso, que não temos outras prioridades para debater?”, pergunta, ao pontuar a forma como a questão do PL antiaborto está sendo conduzida, criticando não apenas alguns colegas de parlamento por se aproveitarem da situação para fazer proselitismo, mas também o que ela chama de “multidão alvoroçada e mal-informada” que tomou conta das mídias sociais”.
Por isso, diante da ressurgência discurso – “Deus, Pátria e Família” – o mesmo que deu origem ao golpe de 1964, a deputada petista bem que poderia avaliar a possibilidade de ensinar o bê-á-bá àqueles que parecem ter ouvido o galo cantar, mas que não sabem aonde.
Daí a necessidade de “informar” que a direita defende o conservadorismo, o liberalismo econômico, os valores tradicionais e criticando a intervenção estatal excessiva, promovendo a iniciativa privada e uma política de segurança pública mais rígida”, em contraponto, “a esquerda em sua luta incessante de políticas progressistas, igualdade social, intervenção estatal na economia e direitos trabalhistas, como faz o PT, que enfatiza a justiça social, distribuição de renda e programas sociais como o Bolsa Família”.
Até aí tudo bem, cada um em seu quadrado, mas ficando uma sugestão de aulinha para a professora-deputada Gleice Jane, ante a gritante ignorância desses histriônicos, já que tão conservadores quanto os ditos direitistas são também alguns esquerdistas. Governantes, inclusive, como os de Cuba e Venezuela. Ela mesmo lembra que o castrismo iniciado pelo companheiro Fidel é um exemplo de conservadorismo de esquerda, combinando autoritarismo com políticas socialistas e anti-imperialistas. Da mesma forma Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, que mantiveram um regime socialista e autoritário, com forte controle estatal sobre a economia e repressão a opositores.
Na mesma América do Sul onde impera o conservadorismo de direita no Chile de Sebastián Piñera, presidente em dois mandatos (2010-2014 e 2018-2022), que promoveu políticas de livre mercado e segurança pública e na Colômbia, onde o presidente Iván Duque (2018 a 2022), seguiu uma agenda conservadora, especialmente em relação à economia e segurança. Ao Norte, nos Estados Unidos, o “bolsonarista” Donald Trump (2017-2021) implementou políticas nacionalistas e conservadoras, focando na imigração e economia.
Outra “novidade” que a professora Gleice pode fazer chegar principalmente àqueles que batem no peito ufanando-se do direitismo que representam é que imperam mundo afora alguns regimes progressistas de direita, como na Noruega, com governo liderado pelo Partido Trabalhista que têm promovido políticas progressistas, com foco em bem-estar social, igualdade de gênero e sustentabilidade. Também na Suécia, conhecida por seu modelo de estado de bem-estar social, com uma longa tradição de políticas progressistas, incluindo fortes redes de segurança social e direitos trabalhistas. Não muito diferente na Espanha, onde o governo do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), liderado por Pedro Sánchez, implementou políticas progressistas em áreas como direitos LGBTQ+, igualdade de gênero e mudanças climáticas.
Para concluir sua aula, a professora Gleice Jane poderia deixar claro que polarização política no Brasil reflete um fenômeno global onde as linhas entre esquerda e direita se tornam cada vez mais definidas e conflitantes. A era Bolsonaro revitalizou a direita conservadora, enquanto o retorno de Lula ao poder reafirma a força da esquerda progressista. Com exemplos de conservadorismo e progressismo ao redor do mundo, fica claro que a dinâmica política é complexa e varia conforme o contexto social, econômico e cultural de cada país.
Quem sabe assim, direitistas ou esquerdistas, uma vez no governo, priorizem a educação e a cultura, para evitar que professores como Gleice Jane, uma vez investidos em cargos eletivos, possam cuidar de seus mandatos, focados no macro dos interesses da população, não precisando fazer hora extra para ensinar a seus pares o que eles deveriam ter aprendido na escola.