O Plano Real deixou como herança pilares importantes para a gestão da economia que persistem até hoje, mas um deles não consegue ficar de pé, o regime fiscal, afirma Pedro Malan, que presidiu o Banco Central e o Ministério da Fazenda durante a criação e implantação do programa de reformas que venceu a hiperinflação.
“Ao longo desses últimos 25, 30 anos, nós definimos que o regime cambial que mais serve ao país é o regime de taxa de câmbio flutuante. Eu espero que ele seja preservado, tenho razões para acreditar que o será. Definimos um regime de metas de inflação que, acho, vem sendo útil ao país, e espero que seja preservado”, afirma Malan.
“Tentamos definir um regime fiscal com base na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas isso continua sendo, a meu ver, um grande desafio”, disse o ex-ministro do governo FHC nesta entrevista a Alexa Salomão, da Folha de S.Paulo.
Em retrospecto, entre os muitos elementos que permitiram o sucesso da nova moeda, Malan destaca o fator humano. Fez diferença, acredita, o processo ter sido conduzido por um articulador hábil com credibilidade.
“Fernando Henrique era um político com a experiência e com o trânsito, tanto na Câmara quanto no Senado, com a sociedade em seu conjunto. Uma pessoa conhecida, respeitada que fortaleceu o Ministério da Fazenda. Ele reuniu uma massa crítica. Pessoas envolvidas nessa discussão.”
Faço essa pergunta sempre, e a resposta não vem igual. Por que o Real deu certo depois de planos sucessivos fracassados?
São várias razões. Primeiro, tem um aprendizado com a experiência. Alguns dos participantes do Real, como o André Lara Resende, o Persio Arida, o Edmar Bacha, se envolveram no Cruzado 1, não no Cruzado 2. Depois, tivemos o Plano Bresser em 1987, o Plano Verão em 1988, Collor 1 em 1990, Collor 2 em 1991. Eu acho que sempre fica algum aprendizado com a experiência.
Foi assim também com a dívida externa. Tivemos muitas dificuldades nos anos de 1980. Depois, acho que o sucesso nessa negociação ajudou em muito na criação de um clima favorável em relação ao Brasil por parte da comunidade internacional.
A segunda razão para o sucesso, estou convencido disso, é Fernando Henrique Cardoso. Conseguimos criar ao longo do tempo um clima de que havia ali um propósito a partir do momento que ele assumiu o Ministério da Fazenda, sendo o quarto ministro da Fazenda, antes que o governo Itamar Franco chegasse aos seus primeiros oito meses.
Fernando Henrique era um político com a experiência e com o trânsito, tanto na Câmara quanto no Senado, com a sociedade em seu conjunto. Uma pessoa conhecida, respeitada que fortaleceu o Ministério da Fazenda. Ele reuniu uma massa crítica. Pessoas envolvidas nessa discussão. Fernando Henrique conhecia a todos, todos o conheciam, todos o respeitavam e vice-versa. Não tinha ninguém ali disputando poder, não tinha ninguém ali interessado em posições. Estavam comprometidos com a tentativa de fazer um ataque que pudesse ser bem-sucedido em relação à inflação.
Falando dos preparativos que levaram ao sucesso do Plano Real, lembro que ele assumiu na terceira semana de maio e, no dia 13 ou 14 de junho daquele ano, o Ministério da Fazenda divulgou um documento ao qual eu atribui uma grande importância, o PAI, o Programa de Ação Imediata [que sinalizou o que viria a ser o fio condutor dos oitos anos de governo Fernando Henrique: corte de gastos públicos e recuperação de receitas de União, estados e municípios; ajuste nos bancos estaduais e federais e também privatizações].
O PAI dava a entender que o governo tinha um rumo, um sentido de direção, um propósito, e que ia além do combate à hiperinflação, que estava preocupado com o contexto maior, com medidas de reformas. Isso aí foi muito importante. Também chamou a atenção para a desordem das contas públicas no Brasil.
Na questão de finanças de estados e municípios, e o equacionamento de suas dívidas, eu achei que a Lei de Responsabilidade Fiscal teria vindo para resolver o problema na perspectiva mais de longo prazo. Não foi o caso. Continua sendo um grande desafio para o atual governo, e os futuros governos terão que enfrentar.
Podia explicar melhor o que o preocupa?
Então, o Brasil tem um regime de facto, ainda que não de jure [na lei] de taxa de câmbio flutuante que começou em janeiro de 1999. Completou 25 anos em janeiro desse ano. O regime de metas de inflação veio em junho de 1994. Está comemorando 25 anos. A Lei de Responsabilidade Fiscal comemorou no dia 4 de maio deste ano seu 24º aniversário.
Ao longo desses últimos 25, 30 anos, nós definimos que o regime cambial que mais serve ao país é o regime de taxa de câmbio flutuante. Eu espero que ele seja preservado, tenho razões para acreditar que o será. Definimos um regime de metas de inflação que, acho, vem sendo útil ao país, e espero que seja preservado. Tentamos definir um regime fiscal com base na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas isso continua sendo, a meu ver, um grande desafio.
Ela foi contestada desde o início por alguns que acham, no Brasil —uma opinião que eu respeito, mas acho equivocada—, que a responsabilidade fiscal não é compatível com a responsabilidade social e, portanto, um pronunciamento oficial na época de um grande partido político era que ela precisava ser radicalmente modificada, porque a responsabilidade fiscal não podia se dar às expensas da responsabilidade social, o que eu acho um equívoco.
Até para novas gerações, que não conhecem hiperinflação, o sr. podia explicar melhor o papel do fiscal no combate à inflação?
As políticas monetária, cambial e fiscal são interligadas e desempenham um papel absolutamente fundamental nas expectativas. É da natureza do processo econômico ser prospectivo —está sempre olhando adiante. Expectativas são formadas por agentes econômicos, consumidores, investidores domésticos e internacionais. Eles formam as suas expectativas quanto ao curso futuro dos eventos em função dos resultados que estão aparecendo no presente, e pela percepção do comprometimento —ou não— de um governo com a responsabilidade fiscal na condução da coisa pública.
A proposta, então, no que se refere ao gasto público, é que todo governo é livre para definir suas prioridades, mas, uma vez que ele definiu a prioridade, pela lei [de Responsabilidade fiscal], é preciso dizer qual imposto, que fatia da carga tributária vão ser utilizados para financiar o novo gasto, ou que outro gasto antigo será limitado para acomodar essa nova prioridade.
Na sua avaliação, não ficou ainda mais difícil fazer a gestão do Orçamento, dado que temos um Congresso mais ativo, fazendo mais política do que política pública, e fatores imprevisíveis, como mudanças climáticas, que tendem a pressionar ainda mais o gasto? Veja o exemplo do Rio Grande do Sul.
Temos um arranjo institucional. Somos uma democracia com três Poderes independentes em si, e o Congresso construiu um peso. O atual presidente do Senado definiu, de maneira muito taxativa quando foi questionado, que o nosso regime é semipresidencialista, porque o Congresso tem um poder enorme. Hoje as emendas de bancada, relator, comissão, individuais representam no seu conjunto provavelmente pelo menos um quarto dos 10% que sobram.
Mas eu vou colocar de outra maneira: uma sociedade e um governo que não têm o mínimo de compromisso com a responsabilidade fiscal encontrarão formas de expandir os gastos, independentemente do estatuto jurídico do seu Banco Central. Esse é negócio que me preocupa.
Estou convencido de que a sociedade brasileira hoje dá valor ao controle da inflação. Qualquer governante que dê a entender que não tem preocupação com a inflação, que permita que ela suba além do razoável, será penalizado nas urnas. Também é mais fácil você discutir câmbio e juros. Todo mundo tem opinião a respeito. O fiscal, não. Como dizia o Everardo Maciel, meu secretário da Receita: não tem nenhuma linha no Orçamento que seja órfã. Todas as linhas lá têm um pai, uma mãe, um tio, uma tia, um avô, uma vó, um conjunto de interesses. Você vai mexer na linha, a grita é automática.
Então, nós temos que adotar spending review [revisão de gasto]. Hoje, 17 países da OCDE têm. É um procedimento normal, recorrente, um governo fazer avaliação de seus próprios programas para identificar quando alguns devem ceder lugar a outros que são mais prioritários, porque as prioridades mudam.
Até começo a ver no debate público no Brasil uma defesa pela revisão de gastos. Mas há um complicador: nós não temos uma tradição nisso. Espero que os debates ao longo dos próximos três anos e naqueles que se seguirão permitam que a sociedade reflita um pouco mais sobre isso. Governar é fazer escolhas, definir prioridades, saber que não é possível fazer tudo, e que nem tudo é possível porque seja desejável. Como dizia Marcos Tavares, ministro do Planejamento, o mérito de uma despesa não traz consigo os germes do seu próprio financiamento.
No que se refere ao gasto com mudanças climáticas, eu sou mais esperançoso.
Rio Grande do Sul vive uma tragédia, e vai demorar muito tempo para se recuperar. No entanto, eu espero que agora, nas eleições deste ano —não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o país— os eleitores dediquem mais atenção em quem vão votar para prefeito e vereador e escolham melhor. Acredito ser possível extrair dessa tragédia algumas lições sobre a importância da eficiência na prestação de serviços públicos no âmbito municipal, estadual e federal, até para prevenir as futuras. A escolha das pessoas é fundamental.
RAIO-X | PEDRO MALAN, 81
Natural de Petrópolis (RJ), cursou Engenharia e Economia, área em que tem doutorado pela Universidade da Califórnia, Berkeley (EUA). Foi professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e teve intensa vida pública. Foi negociador-chefe da dívida externa (1991-1993), presidente do Banco Central (1993-1994) e ministro da Fazenda (1995-2002). Autor de vários textos, publicou o livro Uma certa ideia do Brasil: Entre passado e futuro (Intrínseca, 2018), e foi sendo também co-organizador do “130 anos em busca da República” (Intrínseca, 2019), vencedor do Prêmio Jabuti em 2020