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segunda-feira, setembro 16, 2024

Não conseguimos deixar de ser um país machista e racista

Estamos nós, em pleno 2024, vendo a estrutura se repetir: a privacidade de uma das vítimas desrespeitada, a tentativa de desqualificar as histórias das mulheres, relatos informais circulando há tempos sem que ninguém agisse, a dificuldade geral de entender o que é crime e o que não é

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Ficou esquecida na História a carta aberta que cem mulheres francesas publicaram na edição de 8 de janeiro de 2018 do Le Monde. Nela, criticavam o movimento #MeToo e as denúncias feitas por atrizes americanas contra figurões de Hollywood. “Nós defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”, era o título do documento assinado, entre outras, pela atriz Catherine Deneuve e pela escritora e curadora Catherine Millet.

O que as Catherines não entenderam em 2018, e muita gente teima em não entender em 2024, é que existe uma larga avenida entre um flerte e um assédio ou uma importunação sexual. Uma cantada não dá direito a ninguém de dispor do corpo do outro sem consentimento. Deixem-me ser ainda mais clara: ninguém é livre para passar a mão no corpo de outra pessoa, puxá-la pelo braço ou pelo cabelo, dizer o que quiser ao pé do ouvido, roubar um beijo ou usar de sua posição hierárquica para satisfazer o próprio desejo ou obter sexo. E, sim, essas são todas situações recorrentes nas vidas das mulheres — estejam elas na França, nos EUA ou no Brasil.

A demissão do ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida nesta sexta-feira (6), após denúncias de assédio e importunação sexual contra ele serem tornadas públicas, é como voltar à carta das francesas em 2018. Estamos nós, em pleno 2024, vendo a estrutura se repetir: a privacidade de uma das vítimas desrespeitada, a tentativa de desqualificar as histórias das mulheres, relatos informais circulando há tempos sem que ninguém agisse, a dificuldade geral de entender o que é crime e o que não é.

No Brasil, o Código Penal dedica um capítulo inteiro aos crimes contra a dignidade sexual e contra a liberdade sexual. Diz a nossa legislação que importunação sexual é “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Já assédio sexual é “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” Como a relação hierárquica está no centro da definição do crime de assédio sexual é mais comum que ele ocorra em ambientes de trabalho, mas ele também pode ocorrer, por exemplo, em instituições de ensino e religiosas.

Vale lembrar que estão em vigor no Brasil também a Lei 14.540, de 2023, que criou o Programa de prevenção e enfrentamento ao assédio sexual, à violência sexual e outros crimes sexuais na administração pública, e a Lei 14.457/22, que determina que empresas com Cipa tenham um canal para denúncias de assédio moral e sexual. Um exagero legal? Não. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registradas 8.135 denúncias de assédio sexual e 41.371 de importunação sexual no Brasil em 2023.

Na tal carta de 2018, as francesas acusam o movimento #MeToo de transformar cavalheirismo em agressão machista e incentivar “um ódio aos homens e à sexualidade”. Também afirmam que o movimento denuncia indivíduos que, “sem terem a oportunidade de responder ou se defender, foram colocados no mesmo nível de agressores sexuais.”

Outra coisa que as Catherines não entenderam em 2018, e muita gente teima em não entender em 2024, é que o #MeToo não é o organizador de um “J’accuse” coletivo. Ele foi criado por sobreviventes de violência de gênero nos EUA, com a ativista Tamara Burke à frente, para acolher mulheres e ajudá-las a superar o trauma. Tornado célebre pelos relatos das atrizes de Hollywood contra o produtor Harvey Weinstein, o #MeToo é na verdade um movimento pelo direito das mulheres a um ambiente de trabalho seguro. Quem verifica, julga e pune é a Justiça.

O que definitivamente nenhum de nós pode se dar ao luxo de não entender em 2024 é que os crimes sexuais são majoritariamente cometidos por homens contra mulheres. Há um ciclo de violência, constantemente explicado por promotoras de Justiça, que começa com assédios, importunações ou agressões verbais e que, se não for interrompido, pode chegar ao feminicídio. É por isso que a palavra da mulher não pode ser desprezada e que um canal seguro para as denúncias deve existir. E é também por isso que o suposto agressor tem de ser afastado de quem o acusa, do ambiente e da estrutura de poder onde os supostos crimes ocorreram até que tudo seja apurado pela Justiça. Chefe, professor, ministro, padre ou pastor: nenhum homem está acima da lei.

Mas como tudo é mais complexo em um país cuja estrutura social está assentada no machismo e no racismo, chega a ser chocante a rapidez com que as medidas do governo, corretíssimas por sinal, foram tomadas contra o ministro Silvio Almeida. Fosse ele um homem branco, sua demissão teria acontecido menos de 24 horas após as denúncias se tornarem públicas? Provavelmente não. Fosse a ministra Anielle Franco uma mulher branca teria ela tido sua privacidade preservada? Provavelmente sim.

Há quem diga que as denúncias contra o ministro são danosas ao feminismo e ao antirracismo. Não é verdade. São justamente esses movimentos que cobram que todos os casos de violência sejam investigados e punidos de acordo com a lei e dentro de perspectivas de gênero, raça e classe. O dano não foi feito esta semana. Ao contrário, ele está posto há tempo no Brasil: não conseguimos deixar de sermos um país machista e racista.

Renata Izaal/O Globo — Rio de Janeiro

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