No final do século passado, mais propriamente na virada da década de 1970, o estado ainda era o Mato Grosso uno, e a prefeitura de Dourados nem estrutura de secretarias tinha. Era prefeito o lendário João da Câmara — o maior líder político que a região já teve — e a estrutura administrativa se resumia a um secretário-geral, um tesoureiro e uma poderosa secretária de gabinete, Anecir Ferreira, que mandava mais que todos. Em 1976, elege-se aquele que até hoje é tido como o melhor prefeito da cidade, José Elias Moreira, o que só foi possível porque ele resolveu peitar o coronelismo político e importar um time de notáveis para o secretariado: técnicos pouco afeiçoados à política, vindos do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Minas Gerais e até da velha capital, Cuiabá. Foi um deus nos acuda. Zé Elias chegou a ter o mandato “cassado” provisoriamente pela Câmara Municipal, mas foi absolvido pela Justiça depois de uma articulação dos deputados Londres Machado e João Leite Schmidt com o promotor de Justiça Ari Fonseca, que mandou arquivar as denúncias.
Que me perdoe a professora Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo (até hoje a melhor relações-públicas da prefeitura de Dourados, na administração de Luiz Antônio Álvares Gonçalves), mas nunca antes foi tão necessário escrever na primeira pessoa, até porque o grande personagem deste texto, o prefeito eleito Marçal Filho, está intrinsecamente envolvido na história. Marçal Filho, que foi meu braço-direito na Secretaria de Comunicação de Braz Melo, substituiu Noemi Ferrigolo no departamento de relações-públicas da prefeitura em 1989. Mais tarde, quando assumi a direção de jornalismo da TV Morena em Campo Grande, tentei “roubá-lo” de Braz Melo para substituir Carmen Cestari na apresentação do MS TV 2ª Edição, mas ele já pensava grande. Mesmo tendo sido aprovado em teste de estúdio, declinou do convite para buscar seu primeiro mandato de deputado federal.
Antes de ganhar um cargo de consolação comigo, na administração Braz Melo, porque havia perdido sua primeira eleição como candidato a vereador, Marçal Filho trabalhava na rádio Caiuás, com o mesmo Zé Elias, que conhecera como prefeito enquanto ainda era sonoplasta na Rádio Clube de Dourados. Foi ali que ele acompanhou toda a polêmica da importação de secretários municipais pela administração daquele que viria a ser seu futuro patrão e inspiração como político.
Agora, mais do que nunca, Marçal Filho precisa se inspirar em Zé Elias — não apenas na formação de sua equipe de governo, mas no arrojo administrativo e na visão de futuro. Assim como seu ídolo teve “aquilo roxo” para enfrentar os coronéis de antanho, Marçal precisa ter o mesmo vigor para dar um chega pra lá não apenas nos coronéis, já cambaleantes, da política, mas principalmente nas aves de rapina que migraram para Campo Grande e insistem em sobrevoar a terra de seu Marcelino, prontas para bicadas e abocanhadas que deixam qualquer prefeito manquitolando.
E olha que os coronéis do tempo de Zé Elias eram cabras-machos de verdade, não esses de bravatas, em boteco de sinuca de fim de semana, como o “rei do café” que tentou desmoralizar o “rei do gado” em um bar de Ribeirão Preto, conforme o antológico pagode de Tião Carreiro e Pardinho. Um exemplo: um dos “reis do gado” de Dourados era Antenor Martins Junior, o Negrinho Martins, vereador e liderança udenista, que achava que poderia encurralar o mineirinho recém-chegado e já feito prefeito. “Seu Negrinho”, como era chamado respeitosamente pelo assessor de imprensa de Zé Elias, Júlio Marques de Almeida, era do tipo que ia às sessões do Jaguaribe armado com um “trezoitão”. Quando os debates esquentavam, ele tirava o revólver da cintura e o colocava sobre a mesa, como aviso aos opositores.
Além de Negrinho Martins, toda a elite da antiga e “marvada” UDN (o bolsonarismo de hoje) estava no auge do mando político, incluindo o pai e os tios do presidente do Tribunal de Justiça do estado, o desembargador hoje afastado e “tornozelado” Sérgio Fernandes Sobrinho; o farmacêutico Arnulpho Fioravanti e promotor e defensor público aposentado, deputado e presidente da Assembleia do MT, José Cerveira, o vice-prefeito de Zé Elias. Sem contar o também udenista de quatro costados, ex-deputado e então vereador Celso Amaral, filho de Vlademiro do Amaral, “latifundiário urbano” e à época diretor do jornal O Progresso. Todos, unanimemente, eram contrários à importação de secretariado e às reformas que fariam a grande revolução na administração pública de Dourados. Pior de tudo, outro udenista, o radialista Jorge Antônio Salomão, com seu programa “A Bronca”, aproveitando-se do faro jornalístico de um foca metido a gente grande (eu mesmo) para escarafunchar aquele início de administração.
Ao ler este texto, não há dúvida de que Marçal Filho deve estar tendo calafrios. Afinal, não é apenas esta história que deve servir de espelho para a montagem de seu secretariado, mas também as que ele testemunhou depois como radialista e deputado. Algumas podem ajudá-lo nesta hora decisiva de sua futura administração; outras ele deve evitar como o diabo foge da cruz, para não acabar no inferno político, como Ari Artuzi e Délia Razuk.
Pra começo de conversa, que recorra ao exemplo de “são” Braz, o Melo, cuja primeira administração foi um estrondoso sucesso — e isso só aconteceu porque ele foi muito feliz na escolha do secretariado. Marçal, como chefe de “meu” Departamento de Relações Públicas, deve se lembrar da condição imposta por Braz Melo para que eu deixasse a chefia de sua comunicação e assumisse o jornalismo da TV Morena: encontrar alguém que soubesse tudo e mais um pouco de marketing para o meu lugar. Braz só não esperava que minha indicação recaísse sobre uma “adversária”, a chefe de marketing eleitoral da campanha anterior, de Zé Elias, a jornalista Goretti Dal Bosco. Com ela no comando da comunicação, Braz se tornou o prefeito mais popular da história de Dourados. Só não virou governador porque não enxergou além do próprio umbigo, limitando-se ao paroquialismo de sua sucessão quando toda a classe política do estado já o tinha como sucessor de Pedro Pedrossian.
Com um bom secretariado Marçal Filho pode fazer a diferença e evitar repetir tudo o que criticou em Alan Guedes, o que o fez se eleger prefeito. Cedendo aos coronéis e às aves de rapina da política estadual pode acabar como Ari Artuzi ou Délia Razuk.