Foi em 1964, depois de quatro anos de um doloroso bloqueio criativo. O colombiano Gabriel Garcia Marquez, ainda um autor desconhecido fora da América Latina, estava de férias com a mulher e os filhos quando, dirigindo numa estrada, descobriu que era capaz de recitar, palavra por palavra, o livro que vinha querendo escrever desde os 15 anos de idade.
Ele deu meia-volta e foi para casa, na Cidade do México. Ainda no caminho, pediu para a mulher, Mercedes, cuidar das finanças domésticas. A partir de então, Garcia Márquez, ou simplesmente Gabo, passou oito horas por dia escrevendo, durante 18 meses, o épico sobre a dinastia dos Buendía, de Macondo, o povoado fictício inspirado na cidade de Aracataca, onde o autor viveu parte da infância.
Quando o original de “Cem anos de solidão” foi enviado à editora SudAmericana, em Buenos Aires, o escritor já estava criticamente endividado. Mas a obra alcançou enorme êxito imediato e virou um clássico. O jornal francês “Le Monde” a listou entre os cem melhores livros de todos os tempos. Em 1982, o autor receberia o Nobel de Literatura. Agora, 57 anos após sua publicação inicial, em 1967, o livro ganha o formato de uma excelente série de oito episódios, que estreou este mês na Netflix.
“Foi como uma explosão”, disse Gabo em um entrevista ao “New York Times” publicada pelo GLOBO em 1996. “Enquanto estava escrevendo meus cinco livros anteriores, sentia sempre que faltava algo. Eu percebia que as coisas mais fantásticas e sobrenaturais ocorrem na vida real, nas ilhas do Caribe. Então, pensei, se minha avó me contou essas histórias e eu acreditei, por que não escrevê-las?”.
O primeiro livro que o autor leu na vida foi “As mil e uma noites”. O jovem Gabo encontrou os capítulos da obra soltos num caixote empoeirado e não largou mais a história de Sherazade. “Vi que abriam uma garrafa e dela saía um gênio e li sobre uma mulher que cortou a barriga de um peixe e encontrou um diamante”, recordou-se o escritor. “Pensei comigo: ‘Por que não tenho coragem de escrever assim?'”.
Ele contou que ouvia histórias fantásticas da mãe e da avó, contadas como se fossem casos naturais. Aí, segundo ele, estariam os princípios estéticos de sua literatura. “Era uma definição literária e estética do que queria escrever. Mas me faltavam elementos vitais: o estilo e o tom. Perguntei-me, novamente, por que tinha acreditado naquelas histórias e compreendi que foi por causa da expressão no rosto de minha avó. Ela parecia profundamente convencida do que estava falando”, explicou Garcia Marquez.
O editor da SudAmericana gostou tanto de “Cem anos…” que, em vez de publicar os 3 mil exemplares de praxe na primeira tiragem, mandou rodar 8 mil. A fornada inicial se esgotou em duas semanas. O sucesso foi tanto que uma nova edição era impressa a cada mês. Depois, era uma por semana. A obra recebeu uma espécie de canonização precoce. Tornou-se um clássico logo depois de nascer.
Entretanto, todo aquele êxito deixou Gabo com bloqueio criativo. “Eu me sentava para escrever e tudo parecia igual. Era um problema moral, na verdade. Se eu continuasse escrevendo centenas de anos de solidão, eles se tornariam uma falsificação”, disse o escritor colombiano na entrevista em 1996.
A “saída” para o entrave foi o livro “O outono do patriarca” (1975). “Hoje, muita gente prefere ‘O outono do patriarca’ a ‘Cem anos de solidão’. Eu também, mas não sou um bom juiz”, disse Garcia Marquez, que, de tempos em tempos, mudava de opinião quando lhe perguntavam qual dos livros dele era o seu favorito. Na década de 1980, ele achava que era “Crônica de uma morte anunciada”. Em 1996, preferia “O amor nos tempos de cólera”. “É o meu melhor. O livro escrito com as minhas tripas”.
Gabo se dizia um fã do gênero “água com açúcar”. “Mas não tenho a mais vaga ideia do que seja o amor”, disse ele. Escrevi 14 livros pensando que talvez pudesse encontrar a resposta. Mas, falando com seriedade, qual é a melhor coisa que alguém pode alcançar senão amar e ser amado? Na verdade, nunca tratei de outro assunto em minhas obras além do amor”, concluiu o autor.
Blog do Acervo/O Globo