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Dourados
sexta-feira, janeiro 10, 2025

A feira da 22

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Abro a janela para deixar entrar o dia. Me deparo com uma manhã fresca e sua promessa de futuro.

Nos anos 60, quando eu tinha cerca de sete ou oito anos, vivia no vilarejo onde meu pai se tornou comerciante. Inicialmente, ele abriu um boteco, que foi crescendo com o crédito oferecido pelas casas comerciais. O pequeno botequim transformou-se em um “secos e molhados”, que vendia de tudo, como os mercados de hoje. Naquela época, era comum encontrar chapa para fogão a lenha, soda cáustica para fazer sabão, pó de arroz, facão e até máquinas manuais para plantar.

Fora o pouco tempo que passava na escola, minha diversão era brincar de comerciante. Eu ajudava meu pai e adorava ir à feira que ele fazia na 22. Deixe-me explicar o que era a “22”, já que nem todos estão familiarizados com as “linhas” da CAND — Colônia Agrícola Nacional de Dourados. A primeira linha ficava antes do vilarejo, Vila Glória, que era localizada entre a “quarta” e a “quinta linha”. Eu nasci na “sétima linha”. Parece algo surrealista, não? Cada vez que falo da “7 linha” aos amigos de São Paulo tenho que explicar a história. Pois bem, as linhas continuavam rumo ao sul. Na “11ª linha”, surgiu Deodápolis. E elas seguiam até chegar à famosa “linha 22”, onde participei da primeira feira do lugar.

Levamos – para a aquela primeira feira – tudo o que pensávamos que poderia ser vendido, em malas de madeira fabricadas pelo meu pai, com cuidado para nada quebrar. Após percorrer mais de 20 quilômetros na carroceria de um caminhão, onde nos reservaram espaço para as malas, meu pai, meu irmão, minha irmã e eu, chegamos ao local. Era domingo, dia de repouso para os trabalhadores que começavam a se instalar na região. Isso significava que estavam desmatando a floresta para transformar o espaço em área de cultivo. O caminhão parou onde terminava a estrada. Era uma espécie de praça, mas sem nada ao redor. De longe, avistei as cores dos ipês — amarelos e roxos. Que coisa bonita, pensei. Ainda havia muito verde.

Não me lembro se as vendas foram boas, mas devem ter sido, pois voltamos muitas outras vezes. Com o tempo, comerciantes começaram a se instalar no lugar, que chamávamos de “Pela Jegue” e que, mais tarde, recebeu o nome de Ipezal. Diferente da primeira feira, quando colocamos os produtos sobre uma lona no chão, meu pai fabricou bancas para expor as mercadorias longe da poeira. Elas – as bancas – eram mais baixas do que as dos outros comerciantes, pois meu pai queria evitar que pessoas pegassem produtos sem pagar, colocando-os nos sacos de compras, feitos de algodão ou juta, sem que percebêssemos. Para a viagem, minha mãe costurou minha primeira calça comprida. De um tecido de algodão verde, que adorei. Se a poeira marcava pouco os produtos, nossas roupas chegavam de volta, no começo da noite, completamente empoeiradas.

Pela Jegue

Acostumada com o termo desde pequena, só mais tarde percebi que ele chocava algumas pessoas, que não gostavam de ouvir que seu lugar amado tinha esse nome, considerado uma “infâmia”. Jovens, para provocar, passavam de carro pelo lugar, gritavam o nome e fugiam rapidamente para evitar represálias. Mas, por que o nome surgiu?

Para mim, o lugar tinha jegues e era onde se pelava o bicho. Normalmente, morto. Para utilizar a pele, tal como o boi, cuja pele pode ser usada para fabricar cadeiras, por exemplo. Ao que se sabe, o termo, também utilizado em outros locais da região de Deodápolis, ainda causa vergonha em alguns, embora menos.

Recentemente, li que existiu uma moradora que jogava água quente nos jegues, pelando-os por maldade — um ato criminoso. Hoje, não se vê mais jegues na região. Eles foram substituídos por motos. Apesar disso, “Pela Jegue” se ainda pode arrancar risadas, inspirou uma empresa de criação de pássaros a “Criadouro Péla Jegue”. Além disso, uma trilha com o mesmo nome foi criada na região.

De toda forma, Pela Jegue faz parte de minha infância, que também tinha céus estrelados e luas cheias.

Mazé Torquato Chotil – é jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP e vive em Paris desde 1985. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.

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