Para a reconstrução das vidas afetadas pela tragédia climática que devastou o Rio Grande do Sul em 2024, é essencial que vítimas diretas e indiretas das enchentes mudem a forma como encaram o mundo após o trauma. Essa é a percepção da psicóloga Débora Noal, que coordenou uma força-tarefa com cerca de 300 profissionais da área de saúde mental do SUS (Sistema Único de Saúde) durante as enchentes. “Além de salvar corpos, é preciso ajudar a dar novos significados e rumos para vidas assinaladas pela dor”, diz ela.
Com atuação em zonas de guerra e catástrofes naturais, Débora foi ao Rio Grande do Sul para trabalhar no acolhimento psicológico para desabrigados. Durante um mês, a psicóloga acompanhou o sofrimento de comunidades devastadas pela tragédia que deixou 183 mortos e 27 desaparecidos e tirou mais de 600 mil pessoas de casa. “Um desastre tira tudo do lugar, inclusive os sonhos e planos”, afirma.
Segundo a psicóloga, a vida após uma tragédia climática deve ser vista como algo novo, e não como uma retomada da rotina antiga, antes de tudo mudar para sempre. “A reconstrução de um povo precisa considerar que não é possível voltar ao estado anterior a um desastre, mas é possível reconstruir a partir de um outro tecido feito de cuidado, respeito e dignidade”, diz.
Débora afirma que, em um primeiro momento de uma tragédia, o trabalho dos profissionais de saúde mental envolve priorizar a escuta e reconhecer a dor e a perda do outro sem tentar suavizá-la. “Precisamos pensar em estratégias de cuidado ampliado que envolvem afeto, técnica e paciência”.
Depois, as atenções do poder público devem se voltar ao desafio do trauma coletivo vivido nas localidades mais atingidas pelas cheias. “É preciso envolver as comunidades afetadas e perguntar a elas como querem a reparação.”
“É fundamental que todos, afetados ou não pela tragédia, se sintam pertencentes a essa recuperação. O desastre de uma comunidade ou região é o desastre de uma nação”, diz a especialista. “Como a rede de proteção de um malabarista, cada um de nós dentro da sociedade é responsável por um dos nós que sustenta a rede de amparo e segurança.”
Colaboradora da equipe de emergencistas internacionais do Médicos sem Fronteiras desde 2008, Débora participou de 15 missões de atendimento de saúde mental para vítimas de grandes desastres em países como Haiti, Sudão do Sul, Líbia e Moçambique. Em 2013, recebeu a Medalha Sergio Vieira de Mello, concedida pelo Itamaraty para pessoas com trabalho reconhecido na área humanitária.
Além da atuação em áreas de desastres naturais, zonas de guerra e ambientes de desnutrição e violência urbana, Débora trabalhou durante a crise da Covid conduzindo a equipe de pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) na área da saúde mental e atenção psicossocial em desastres e pandemias.
Desde então, também lançou o livro “O Humano do Mundo – Diário de uma Psicóloga Sem Fronteiras”, o diário de memórias que escreveu durante suas viagens, compartilhando as experiências compartilhadas com as populações de áreas devastadas.
“Os cuidados de saúde mental e atenção psicossocial oferecidos pelas equipes de saúde são cruciais para garantir que as pessoas afetadas possam mais do que sobreviver, mas também organizar seus projetos de vida”, diz Débora.
Nos primeiros dias da tragédia climática gaúcha, ela participou de uma capacitação de mais de 500 profissionais promovida pela SES-RS (Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul) para orientar ações específicas para responder ao sofrimento causado por catástrofes climáticas.
Ela diz que é difícil traçar paralelos entre grandes desastres naturais, mas reconhece um diferencial nos eventos de maio. Hoje moradora de Brasília, ela é natural de Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul e um dos primeiros locais atingidos pelas chuvas que causaram danos em 425 cidades do estado.
“Como gaúcha, senti orgulho de ver nossa capacidade de responder de forma aguerrida, e senti orgulho de ver profissionais do sul, nordeste, norte, sudeste e centro-oeste trabalhando juntos, renunciando a seus salários e confortos para ajudar humanos na terra onde nasci”, diz Débora. “No desastre, emerge o suco da nação. Vestimos a camiseta do cuidado.”
Carlos Villela/Folha de S.Paulo