O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou o bate-boca entre presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, de “cena grotesca e desrespeitosa”. O brasileiro afirmou ainda que o presidente ucraniano foi “humilhado”.
— Não sou diplomata, mas desde que a diplomacia foi criada não se vê uma cena tão grotesca e desrespeitosa como a que aconteceu na Sala Oval da Casa Branca. Há uma parcela da sociedade que vive em desrespeito ao outro. E não é possível falar em democracia se não há respeito ao outro ser humano. Acho que o Zelensky foi humilhado, acho que na cabeça do Trump o Zelensky merecia isso — disse Lula no Uruguai.
Trump acusou o governo de Kiev de “jogar com a Terceira Guerra Mundial” e afirmou que ele deve “ser grato” pela ajuda americana. Após a altercação, um acordo sobre o acesso dos EUA aos recursos minerais ucranianos não foi assinado, Zelensky foi praticamente expulso da Casa Branca e Trump disse que ele poderá voltar à Casa Branca “quando estiver pronto para a paz”.
Lula afirmou que a União Europeia foi prejudicada pelas falas de Zelensky e que ficará encarregada de “salvar a Otan” (a aliança militar do Ocidente).
— Acho que a União Euripeia foi prejudicada com o discurso do Zelensky. E eu disse ao presidente da Alemanha (Frank-Walter Steinmeier, com quem Lula se encontrou no Uruguai) que é bem possível que a Europa fique responsável pela reconstrução da Ucrânia. É bem possível que fique responsável pela manutenção da Otan e seja responsabilizada pelo desastre que está acontecendo.
O brasileiro disse esperar que “agora todo mundo tenha aprendido uma lição”:
— Somente a paz é capaz de trazer ao mundo a normalidade e a gente viver com prosperidade e com distribuição de riqueza para o nosso povo.
Lula ainda voltou a defender que ser preciso construir diálogo entre Rússia e Ucrânia para dar fim à guerra, que já dura três anos. O petista afirmou que o Brasil tem defendido um acordo entre os países e que “muito dinheiro” já foi gasto no conflito.
— Acho que não tem paz se não houver participação dos dois presidentes que estão em conflito. O que é preciso é tomar uma decisão correta se o mundo quer paz, acho que o mundo precisa de paz — disse.
O bate-boca
Com os dois líderes sentados lado a lado no Salão Oval, cercados por membros de seus governos, Trump começou em um tom relativamente ameno, elogiando a “bravura inacreditável” das tropas ucranianas, e afirmando que elas merecem “grande crédito” por suportarem três anos de guerra. Ele expressou otimismo sobre a assinatura do acordo que daria acesso aos EUA a parte dos recursos minerais ucranianos, visto pela Casa Branca como uma forma de compensar os bilhões de dólares em ajuda financeira e militar, e que era a grande razão da visita de Zelensky a Washington.
— Vamos assinar o acordo no Salão Leste daqui a pouco, logo depois do almoço — disse Trump. — É um momento um tanto emocionante, mas o momento realmente emocionante é quando tivermos um….quando eles (Rússia e Ucrânia) pararem os tiros, e nós fecharmos o acordo. E acho que estamos bem perto de conseguir isso.
Ao falar sobre negociações de paz, sinalizou que Zelensky terá que fazer compromissos e concessões, sem citar o que estaria sobre a mesa, mas que eles “não seriam tão grandes como algumas pessoas estão sugerindo”. Foi quando o clima começou a ficar mais tenso.
Após uma intervenção do vice-presidente americano, J.D. Vance, criticando o governo de Joe Biden por não dialogar com o presidente russo, Vladimir Putin, Zelensky citou a anexação da Crimeia pela Rússia, e 2014, o apoio às milícias separatistas no leste do país e a quebra de acordos previamente assinados, uma referência aos Acordos de Minsk, violados por todos os lados pouco depois de firmados. Ele concluiu dizendo não ser possível confiar em Putin.
— Então, de qual tipo de diplomacia, J.D., você está falando? — questionou Zelensky.
Vance disse que Zelensky estava sendo “desrespeitoso”, que não era grato o suficiente pelo apoio concedido a Kiev e lembrou de uma participação do presidente ucraniano em um evento de campanha da então candidata democrata, Kamala Harris, em setembro do ano passado.
Trump entrou na discussão, apoiando Vance e dando início a uma troca de acusações como há muito não se via na Casa Branca diante das câmeras — se é que se viu alguma vez.
A começar pela recusa de Zelensky em negociar inicialmente com Putin, a quem chamou de “assassino”. Para Trump, é necessário falar com todos os lados do conflito para resolvê-lo, sem condições prévias.
— Bem, se eu não me alinhasse com os dois, vocês nunca teriam um acordo. Vocês querem que eu diga coisas realmente terríveis sobre Putin e então digam, “Oi, Vladimir. Como estamos indo no acordo?”, não funciona assim. Eu não estou alinhado com Putin. Eu não estou alinhado com ninguém. Eu estou alinhado com os Estados Unidos da América, e para o bem do mundo, eu estou alinhado com o mundo, e eu quero acabar com isso — disse o presidente americano.
Trump voltou a acusar, falsamente, a Ucrânia de ser a responsável por iniciar a invasão ordenada por Putin há três anos. Na sala, os presentes compartilhavam um silêncio constrangido.
— Não nos diga o que vamos sentir. Você não está em posição de ditar o que vamos sentir. Você se permitiu estar em uma posição muito ruim. Você não tem as cartas certas agora conosco — ameaçou Trump. — Você está apostando com as vidas de milhões, você está jogando com a Terceira Guerra Mundial. E o que você está fazendo é muito desrespeitoso com este país.
As ameaças continuaram. Segundo o presidente, Zelensky “nâo estava sendo nada grato”, e que seria “muito difícil” negociar assim”.
— O problema é que eu te dei poder para ser um cara durão, e eu não acho que você seria um cara durão sem os Estados Unidos. E seu povo é muito corajoso. Mas ou você vai fazer um acordo ou nós estamos fora e se estivermos fora, você vai lutar. Eu não acho que vai ser bonito, mas você vai lutar. — disse o presidente. — Mas você não tem as cartas, mas uma vez que assinarmos esse acordo. Você está em uma posição muito melhor [com o acordo], mas você não está agindo de forma grata e isso não é uma coisa legal. Vou ser honesto.
A altercação terminou quando Trump pediu para que os jornalistas deixassem o Salão Oval, afirmando que o episódio “ficará muito bom na TV”. Uma entrevista coletiva marcada para depois do encontro foi cancelada, Zelensky deixou às pressas a Casa Branca — segundo a rede CNN, por ordens do presidente americano —, sem assinar qualquer tipo de acordo ou compromisso, e Trump se queixou em sua rede social, o Truth Social.
“Eu determinei que o presidente Zelensky não está pronto para a paz se a América estiver envolvida, porque ele sente que nosso envolvimento lhe dá uma grande vantagem nas negociações”, escreveu Trump. “Eu não quero vantagem, eu quero PAZ. Ele desrespeitou os Estados Unidos da América em seu querido Salão Oval.”
Zelensky foi mais diplomático, e agradeceu o apoio dos EUA ao longo da guerra.
“Uma visita importante à América. Encontrei-me com uma delegação bipartidária do Senado dos EUA em Washington. A assistência militar contínua ao nosso país e iniciativas legislativas relacionadas, um encontro com o presidente Trump, esforços para alcançar uma paz justa e duradoura, nossa visão para acabar com a guerra e a importância de garantias de segurança confiáveis se tornaram os principais tópicos de nossas conversas”, afirmou em suas redes sociais. “Temos orgulho de ter parceiros e amigos estratégicos como os Estados Unidos da América. Obrigado pelo seu apoio bicameral e bipartidário inabalável à Ucrânia durante três anos de agressão russa em larga escala.”
Pouco antes de embarcar para sua residência de Mar-a-Lago, na Flórida, Trump afirmou que Zelensky “se excedeu” no Salão Oval, e que seu objetivo era “conseguir um cessar-fogo imediato”. Ao ser questionado se é a favor da saída de Zelensky, como sugeriu pouco antes o senador e aliado Lindsey Graham, desconversou.
— Ele está querendo continuar e lutar, lutar, lutar. Queremos acabar com a morte — declarou. — Quero alguém que faça a paz.
A troca de ofensas diante das câmeras foi mais um episódio em uma história pouco amistosa entre Trump e Zelensky. Desde a eleição do republicano, em novembro do ano passado, ele demonstra um interesse em se aproximar da Rússia, quebrando a linha adotada por Biden desde o início da guerra, enquanto trata Zelensky como um parceiro minoritário na guerra.
O clima piorou nas últimas semanas, com a resistência inicial do ucraniano sobre os termos do acordo sobre os recursos minerais, além de críticas feitas por ele a Trump — em resposta, o presidente americano afirmou, em mais de uma ocasião, que a Ucrânia era a responsável pela guerra, que Zelensky não era capaz de liderar o país e que era um “ditador”, citando o fim de seu mandato, no ano passado. A Constituição ucraniana permite que o líder siga no posto enquanto a Lei Marcial, decretada em 2022, esteja em vigor.
Agora, com a briga diante das câmeras, todo o esforço para firmar o acordo sobre os recursos minerais, assim como sobre a participação americana na segurança coletiva da Europa, entra em terreno desconhecido. Trump não parece disposto a fornecer garantias de segurança a Kiev, afirma de maneira mais recorrente que os europeus devem cuidar da própria segurança, e, pelo tom que usou na Casa Branca, pode fazer acenos ainda mais contundentes a Moscou, mesmo que às custas de Kiev.
Alice Cravo/O Globo — Brasília