Ao colocar no banco dos réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete aliados, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal deu alguns spoilers de discussões que devem permear o julgamento da trama golpista. Nesta etapa inicial do processo, os ministros deveriam apenas analisar se a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) descrevia com coerência os fatos criminosos, classificava de forma correta os delitos, identificava todos os acusados e indicava a lista de testemunhas. Nas palavras de um integrante da Corte, “é apenas abrir a porta, porque o que vai se ver depois é o que vale”.
E o que se verá depois foi possível espiar pela fresta aberta pelos votos de alguns ministros. O principal prenúncio foi dado por Luiz Fux. O magistrado suscitou o debate sobre o iter criminis, ou seja, o “caminho do crime”, composto por quatro fases: cogitação, preparação, execução e consumação. Fux destacou que toda infração penal tem atos preparatórios, desfiando um argumento da defesa de Bolsonaro.
Não por acaso, o ex-presidente diz que, após perder as eleições de 2022, apenas cogitou decretar estado de sítio, medida de exceção para conter ameaça à ordem social. Mas tudo, segundo o ex-capitão do Exército, foi feito dentro das quatro linhas da Constituição. Para a PGR, o plano de golpe saiu, sim, do papel — e envolveu, além de uma minuta antidemocrática, a execução de um complô para assassinar autoridades.
Essa tese da acusação se encaixa na definição do Código Penal para o crime de abolição violenta do Estado: tentar com “emprego de violência ou grave ameaça” acabar com o regime democrático, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Para a defesa do ex-presidente e de outro militares, não há motivos para falar na prática desse delito, pois não houve ato de agressão contra as instituições.
Conhecedor desse argumento, o ministro Flávio Dino disse em seu voto que pouco importa se o núcleo duro da trama golpista tinha arma de fogo ou branca, pois o grupo que colocou em prática a ação golpista portava um arsenal capaz de restringir os poderes constitucionais e estava disposto a executar autoridades da República. Essa lógica também foi exposta pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, durante a exibição de um vídeo de cenas de vandalismo das sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023.
— Ninguém estava passeando. Havia uma barreira policial, né? E todos invadiram agredindo. Os policiais que jogavam, vejam, jogavam gás de pimenta, as pessoas invadindo. E sempre com a intenção golpista, nós vamos ver várias faixas pedindo intervenção federal. Uma verdadeira guerra campal. Nenhuma Bíblia é vista e nenhum batom é visto nesse momento — disse Moraes.
A referência do relator não foi em vão. Moraes se tornou alvo de ataques bolsonaristas por propor uma pena de 14 anos de prisão à cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. Ela é acusada de ter participado dos atos golpista do 8 de janeiro e de ter pichado com batom a frase “perdeu, mané” na estátua da Justiça em frente à sede do STF.
A sentença de Debora foi adiada, porque o ministro Fux pediu vista para analisar o caso. O magistrado disse, durante o julgamento de Bolsonaro, que vai propor uma revisão da pena imposta a cabeleireira, abrindo divergência com Moraes. O gesto é simbólico e pode ser um ensaio de uma contraposição ao relator do processo da trama golpista.
De olho nessa divergência pontual, a defesa de Bolsonaro enxergou em Fux uma “luz no fim do túnel”. Essa visão, porém, está mais para miragem do que para realidade, pois o magistrado reconhece a gravidade de tudo o que foi revelado na investigação do inquérito do golpe. Ele próprio sentiu o bafo da investida antidemocrática em setembro de 2021, quando presidia o STF e viu caminhoneiros buzinarem enquanto ameaçavam invadir a sede da Corte. Em seu voto, Fux disse que nutre a “extraordinária esperança de que país continuará a viver um Estado Democrático de Direito”.
Thiago Bronzatto/O Globo — Brasília