A passagem sob o prédio, que dá acesso ao outro lado da rua, fechada durante a noite, oferece um espaço protegido da chuva. Nessa hora matinal, há alguém deitado ali. Essa pessoa se mexe; deve estar acordando nesta manhã de fim de inverno. Ao seu redor, três sacolas, garrafas de água e várias coisas: comida? Sacos de papel, papéis… De longe, parecem lenços de papel. A pessoa se mexe, senta-se e levanta-se em seguida. Pega o jeans que estava dobrado no muro que envolve o sistema de ventilação do prédio, sobe a camiseta longa para vesti-lo. Voltada para o prédio, deixa-se ver suas nádegas. Está nua por baixo da camiseta. Os cabelos lhe passam dos ombros. Homem ou mulher? Um ser humano.
Que maldades a vida lhe fez? Perdeu família, trabalho…? Está sem teto. O que faz durante o dia todo?
Vestida, coloca uma blusa de frio e começa a “desfazer” seu espaço noturno, que poderia ser seu quarto. Dobra várias vezes o saco de dormir e o coloca em uma das sacolas. O papelão que serviu de tapete sob o saco de dormir, dobrado, recebe a mesma destinação. Bebe um gole de água da garrafa e continua seu trabalho.
Onde terá feito suas necessidades antes de dormir? E agora, pela manhã? Não tem medo de estar exposta aos perigos da noite?
Os pertences são poucos. Dois casacos estão dobrados sobre o muro que envolve o sistema de ventilação, o qual, durante o dia, muitos se sentam – sobretudo para comer algo, ler um jornal…
Pouco a pouco, quase tudo entrou nas três sacolas. O zelador do prédio, encarregado de limpar a entrada da passagem ainda fechada, chega com ar descontente. Não consigo entender o que diz; certamente, é um português, como muitos que trabalham como zelador. O prédio tem muitos andares e, do outro lado da passagem, ao lado da entrada oficial dos moradores, um outro espaço tal como este, onde vez ou outra é usado por desabrigados. Estes, muitas vezes, deixam muito lixo que o zelador deve limpar. Portanto, ele está irritado. Imagino que deve dizer à pessoa que vê ali que aquele local não é um quarto de dormir.
A pessoa não parece contrariá-lo no final do seu trabalho de arrumação. Tem dificuldades para andar no que vejo quando pega o saco plástico, onde deve ter colocado seu lixo, e encaminha-se para o cesto de lixo na calçada.
Enquanto isso, não vejo nenhum outro papel no chão; penso que a pessoa deve ser uma mulher, pelos detalhes e pela limpeza. Ela volta para recuperar suas sacolas. O zelador já começou seu trabalho: joga água no chão e passa a esfregar com uma vassoura/rodo.
De volta, a pessoa veste os dois casacos que estavam sobre o muro da ventilação, pega com a mão esquerda as duas sacolas menores e, com a direita, a maior, e caminha com passos lentos em direção da esquerda, sumindo do meu campo de visão.
Uma cidade tão rica e repleta de desabrigados.
Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.