Dourados, a segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul, tem vivido já há alguns anos sob a égide da praga da cabeça de burro enterrada aos pés da estátua do tenente Antônio João Ribeiro (herói da Guerra do Paraguai), na praça principal da cidade, que leva seu nome. Isto, claro, do ponto de vista da política, já que na economia o município se garante e vive hoje um boom empresarial jamais visto.
Dizem que há uma cabeça de burro enterrada ali desde os tempos de nossos ancestrais. Mas só agora me caiu a ficha: e se for a cabeça do burro do Azola? O animal sumiu, o crime contra o lendário vereador nunca foi esclarecido, e desde então a cidade parece andar em círculos — como se a alma do burrito ainda vagasse entre os corredores do poder, carregando promessas que ninguém mais quer assumir.
Quando o estado foi criado, em 1977 — e este é o nosso marco temporal — o comando político era de João da Câmara, o primeiro e até hoje insuperável grande líder regional. Ele passou o bastão administrativo a José Elias Moreira, que, de tão bom prefeito que foi, marcando época, saiu da prefeitura para disputar a primeira eleição para o governo do estado. Venceu Wilson Martins, liderança história desde os tempos do velho Mato Grosso, em todo o interior. Só não virou governador porque a diferença de votos em Campo Grande foi astronômica. De lá para cá, administrações medianas, como a do “totosista” Braz Melo e do petista Laerte Tetila, o primeiro a se reeleger consecutivamente.
Em 2008, esse estado de letargia incomodava tanto que o eleitor resolveu experimentar um fenômeno eleitoral para o Executivo — já que para o legislativo Azola do Burro já havia feito história. Foi o meteórico período do fenômeno Artuzi: também vereador, deputado mais votado da história e, na sequência, prefeito. O prefeito da Uragano — a operação policial que fez a maior devassa em prefeituras no estado, com a prisão do prefeito, vice, quase todos os vereadores e a maioria do secretariado e empresariado. E a desgraceira só aumentando.
Um desastre atrás do outro, aí incluindo a frustração com Murilo Zauith, o empresário milionário que veio para quebrar paradigmas, mas que não teve pulso para acabar com a máfia infiltrada na prefeitura e com alguns cartéis licitatórios. Isso culminou com a catastrófica administração Délia Razuk. Alan Guedes, o jovem douradense cheio de boas intenções, tentou mudar o rumo dessa história, mas sucumbiu diante da força do coronelismo que ainda impera na política da terra de seu Marcelino e o veredicto de sua administração ainda está por vir, a depender dos rumos que Marçal Filho dará à essa história.
Também douradense e já começando fazendo um pampeiro nunca antes visto, a ponto de pôr, literalmente, a mão na massa, não só na limpeza de bueiros como na reforma de escolas, Marçal Filho, com bagagem e pulso firme, promete retomar o protagonismo político de Dourados no cenário estadual. Só que ele precisa domar não apenas um cavalo bravo, mas uma tropa de políticos profissionais e aventureiros — aí incluído o próprio Murilo Zauith, que se considera dono de uma boa fatia do bolo do secretariado. Murilo, que como vice-governador tentou dar um golpe para tomar o governo de Reinaldo Azambuja, agora aliado à vice-prefeita bolsonaria Gianni Nogueira, por razões mais que óbvias, representando a maior ameaça golpista à administração que se inicia.
Nesses tempos em que a política é pautada por lives — no que Marçal Filho é mestre — e os campeões de cliques viram também campeões de votos, como figuras que se multiplicam nos stories com promessas recicladas, o insubordinado do jornalismo, que tem a história de Dourados e do Mato Grosso do Sul na palma das mãos, não tem como não ter uma recaída para abrir este espaço tão generoso ao primeiro fenômeno local nesse quesito “esquisitice” — com o devido perdão pela cacofonia — Azola do Burro.
Diferente dos performers de hoje, Azola não precisava de marqueteiro nem de câmera. Seu apelido vinha do fato de circular montado num jegue pelas ruas da cidade, exibindo com orgulho quase messiânico uma imensa raiz de mandioca. Fez isso até na tribuna do Jaguaribe hoje palco de um festival de obviedades pela ânsia das famigeradas lives. Foi eleito, teve atuação discreta, mas suficiente para marcar época. E acabou misteriosamente assassinado — talvez vítima de sua autenticidade crua demais para o sistema, talvez só mais um capítulo mal contado da política local.
Certa feita, diante do dilema enfrentado pelo então prefeito Braz Melo, que precisava escolher um nome de consenso para substituí-lo, Azola aproximou-se sorrateiro de uma porta entreaberta no gabinete. Deixou escapar, com voz baixa e malícia calculada: “Braz, Braz, Braz qualquer coisa o nome do Azola está à disposição…”
Hoje, os novos Azolas galopam ao contrário. Transformam a tribuna em palco, o celular em púlpito e a crítica em motivo de live urgente. Quando contrariados, não respondem com ideias — respondem com encenação. Coletes estilo PRF, distintivo da Câmara de um lado e, na lapela, um símbolo equino estampado como brasão involuntário da persona: meio justiceira, meio caricata, inteira artificial.
O compromisso com a austeridade e com o fim das sinecuras deu lugar a um nunca visto desfile em carros alugados, polpudas verbas de diárias — de viagens nem sempre realizadas — mordomias diversas e discursos que não resistem a uma planilha. O “gabinete ambulante” virou desculpa estática, enquanto apenas um vereador — o estreante cadeirante — foi direto do discurso e da demagogia à prática, colocando na rua uma ambulância e um motorhome para atender sua base. Trabalho de verdade, feito sem selfie nem ring light.
Supondo-se que o prefeito Marçal Filho não consiga o milagre, que seja, da “humanização” da saúde — problema crônico, estrutural, que nem Jesus voltando daria conta, como dizia Tetila — em quem os paladinos da moralidade vão pôr a culpa?
Azola se foi, e ninguém sabe que fim levou seu burrito. Mas ficou o estigma — não do homem, mas da imagem: a de um lombo anônimo carregando, sem alarde, o peso simbólico de uma política que virou espetáculo. E se ainda observa, é do alto do silêncio. Porque sabe: quem relincha demais é quem mais sentiu o arreio da verdade apertar.
Porque, no fim, política em Dourados continua sendo isso: uma eterna procissão de salvadores, cada qual com sua tropa, seu figurino e sua sede de protagonismo. Mas poucos, pouquíssimos, têm estatura para compreender que o poder verdadeiro não se exibe — se constrói em silêncio, com coerência e serviço.
A cidade, que sempre sonhou alto hoje parece estacionada entre a nostalgia e o improviso, assistindo a uma disputa de vaidades disfarçada de renovação. E talvez seja por isso que o velho burrito do Azola continue sendo símbolo de algo que já não se vê: o político espontâneo, sem pose, sem filtro, sem script. Que Marçal Filho, em sua determinação de “fazeção” consiga virar esta página.
Porque o tempo ensina — até ao cavalo. Mas só o burro sabe o peso de carregar a verdade.
O relincho das lives que lembra o burro do Azola
Entre a indignação performática e a crítica montada, o silêncio do burrito ainda vale mais que mil gritos ao vivo
