Pelo jeito, o avião já estava em procedimento de pouso no aeroporto Ueze Zahran, em Campo Grande, naquela que parecia ser a tarde de um belo domingo outonal. A paisagem, vista da cobiçada janelinha, encantava os “marinheiros” de primeira viagem. Eis que, de repente, no silêncio das turbinas, surge em plano de fundo (bg) a voz de um dos deslumbrados passageiros — até o enquadramento, em close, flagrar a figura caricata do sargento Prates, o vereador “patriota” que só adentra ao plenário do Jaguaribe enrolado na bandeira brasileira. Tudo com direito a uma papagaia de pirata no enquadramento.
E o anúncio bombástico: “Estamos trazendo aqui, nesse avião, R$ 3 milhões para a Saúde de Dourados!” Bons tempos em que os papagaios de pirata se contentavam com cinco segundos de fama atrás de alguma figura ilustre, diante das câmeras de TV. Mas, em coro, ecoa outro anúncio: mais R$ 3 milhões, também para a mesma Saúde. A grana anunciada por Prates era uma “oferta” do deputado Rodolfo Nogueira. A papagaia de pirata atribuiu a sua à senadora Soraya Thronicke.
Terminou? Claro que não. Em terra firme, já em Dourados e também procedente de Brasília, lá vem o vereador Dil “do povo” do Canaã, descendo de seu “uninho” adesivado — como se ainda estivesse em campanha. Abre o bagageiro, retira a mala e, triunfante, um “checão” de mais alguns milhões, também ofertados pelo gordinho do Bolsonaro. Pelo entusiasmo dava até a impressão que ia direto para a boca do caixa para descontar. A esta altura, a dúvida já era legítima: estamos falando da mesma grana? Ou será que Rodolfo aprendeu — além de cuidar das unhas de Bolsonaro e de patrocinar fake news — o milagre da multiplicação das famigeradas emendas parlamentares?
Se a grana for a mesma, nem é preciso ir muito longe: o crime de fake news já estaria configurado. E nem seria necessário apurar, em detalhes, outras possíveis irregularidades como o uso indevido das diárias de viagem para “compromissos oficiais” em Brasília. E tem mais gente nesse “voo da alegria”, aí incluído o iniciante petista, mas não menos deslumbrado, Franklin Schmalz, que também foi a Brasília “resolver” questões que não são da alçada do legislativo municipal. Aliás, seria interessante que o Ministério Público começasse por investigar a real necessidade desse tipo de viagem, já que se deputados federais e senadores existem é exatamente para isso, porque daqui a pouco o molho fica mais caro que o peixe.
Tudo isso remete, inevitavelmente, aos áureos tempos do grande prefeito José Elias Moreira. Para conseguir a tal governabilidade, Zé Elias precisou bancar mordomias dignas de emirados para os vereadores douradenses: passagens aéreas, hotéis luxuosos, restaurantes estrelados e muita, mas muita cachaça para amolecer os corações oposicionistas. Quando a comitiva douradense desembarcava em Brasília, já havia, no portão de desembarque do Aeroporto JK, um cicerone encarregado de levantar as “preferências” — sim, sexuais inclusive — de cada edil. À noite, o pau torava.
No livro Como se vira jornalista, que estou terminando, conto em detalhes essas histórias saborosas: como a de um vereador evangélico, incomodado com o chacoalhar e os gritos na cama do colega de quarto, que precisou reforçar o estoque de cobertores para tampar olhos e ouvidos, para resistir à tentação; a de um simplório vereador de mandato único, agraciado com uma antiga modelo de caixas de fósforo — já derrubadona, mas ainda compatível com a idade do freguês; e a de ilustre líder da antiga UDN, figura ilibada da sociedade douradense, que acabou no hospital depois de tentar domar uma potranca diferente das que costumava lidar em sua fazenda.
Não estou afirmando que os atuais ocupantes do Jaguaribe estejam incorrendo nos mesmos crimes daquela época dourada. O relato acima é de uma era em que o único promotor de Justiça da cidade era parceiro de cerveja do jornalista insubordinado que vos escreve — e que, ao ser promovido para Campo Grande às pressas, ainda teve a decência de avisar que engavetara uma denúncia que poderia ter cassado o mandato do prefeito.
Mas é bom que fique o alerta, para que não restem dúvidas: hoje, por falta de um, são vários os promotores à espreita — e não apenas ex-funcionários de Murilo Zauith travestidos de professores de Direito. Mesmo aqueles que se vangloriam de muito “trampo” de bastidores, ou os que nem isso conseguem fazer, deviam pôr as barbas de molho. Porque, se hoje falta capacidade de leitura em alguns gabinetes, sobram advogados assessorando alguns deles, os mesmos que, ironicamente, denunciaram esse mesmo tipo de farra em legislaturas passadas.
Não bastassem os exemplos ainda vivos na memória dos douradenses, dos tempos Uraganos, Owaris e de Câmara Secreta, de camburões e mais camburões da Polícia Federal no trajeto entre o Jaguaribe e a Penitenciária estadual, abarrotados de suas excelências, os nobres edis, seus assessores e afins, deixo aqui alguns exemplos de outros municípios brasileiros, alguns aqui mesmo do MS, em que a prática da farra das diárias foi severamente punida.
Exemplos fresquinhos do Brasil afora:
Ribas do Rio Pardo (MS)
Entre janeiro de 2013 e setembro de 2014, vereadores e servidores embolsaram mais de R$ 523 mil em diárias.
O Ministério Público Estadual denunciou 11 vereadores e dois servidores por improbidade administrativa.
A Justiça proibiu novas liberações de diárias e mandou devolver o dinheiro.
Cantagalo (PR)
O vereador Valmir Silveira (PTB) foi condenado a 11 anos e três meses de prisão por peculato e falsidade ideológica.
Recebia diárias sem sequer viajar.
Perdeu o cargo e terá de devolver R$ 10,8 mil.
Guaxupé (MG)
Doze vereadores foram condenados.
Utilizavam recursos da Câmara para viagens e cursos “fantasmas”.
Tiveram os direitos políticos suspensos por oito anos e precisarão devolver mais de R$ 150 mil.
Guaratuba (PR)
Ex-vereadores e servidores foram obrigados a ressarcir diárias irregulares que variavam de R$ 900 a R$ 1.350 cada.
Anastácio (MS)
O MPMS instaurou inquérito para investigar vereadores que recebiam diárias maiores que os salários de ministros de Estado.
Determinação: resolver a farra imediatamente.
Governador Valadares (MG)
A “Operação Mar de Lama” escancarou a corrupção na Câmara: vereadores recebiam propinas de empresários para financiar campanhas.
Diversos parlamentares foram afastados e respondem por corrupção e lavagem de dinheiro.