Cem dias depois de assumir o governo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, decidiu promover nesta terça-feira (29) um comício nos moldes do que fez durante a campanha do ano passado. A uma plateia com algumas milhares de pessoas em Michigan, Trump usou palavras-chave do período eleitoral e reforçou suas ações e embates do atual mandato, referindo-se a juízes como comunistas.
“Não podemos permitir que um punhado de juízes comunistas, de extrema esquerda, obstruam a aplicação de nossas leis e assumam os deveres que pertencem exclusivamente ao presidente dos EUA”, afirmou. “Os juízes estão tentando tirar o poder dado ao presidente para manter nosso país seguro.”
Uma das marcas dos primeiros cem dias é o embate entre o líder republicano e magistrados que têm emitido ordens bloqueando suas ações. Trump editou mais de 140 decretos nestes primeiros meses —superando inclusive a própria marca do primeiro mandato. Segundo o jornal The New York Times, no período, 122 ordens foram suspensas, ao menos temporariamente.
Embora seja visto por analistas como um sinal de autoritarismo, o excesso de decretos é na verdade comemorado pelo presidente americano. Ele afirmou nesta terça ter feito mais de “mil ações executivas” nesses primeiros meses do ano.
Como em praticamente todos os pronunciamentos públicos, o presidente exaltou suas políticas na área de imigração e, sobretudo, a deportação para uma prisão em El Salvador de pessoas acusadas de integrar facções criminosas, embora a medida tenha sido amplamente contestada na Justiça.
Ao longo de alguns minutos, o presidente parou o discurso feito em um ginásio do condado de Macomb, em Michigan, para passar um vídeo em um telão. As imagens mostraram imigrantes deixando o avião, entrando na prisão de El Salvador e tendo seus cabelos e barbas raspados. “O mundo está vendo uma revolução do bom senso”, afirmou Trump sobre os cem primeiros dias de seu governo.
Em outro momento, Trump chamou uma assessora ao palco, que pegou o microfone e disse: “Trump 2028?”, provocando o público sobre um eventual terceiro mandato do republicano, algo proibido pela Constituição. O presidente não respondeu ao comentário, mas a plateia comemorou a fala e levantou a mão mostrando o número três.
Trump também criticou repetidas vezes o ex-presidente Joe Biden durante seu discurso, chamando-o de “Joe cansado”. Também afirmou que democratas que o criticam e que, recentemente falaram em impeachment, são malucos. “Eles enlouqueceram completamente, essas pessoas”, afirmou.
O presidente ainda aproveitou o comício para defender um dos seus secretários mais polêmicos, Pete Hegseth, chefe da Defesa, que participou de um grupo no Signal que teve conversas sigilosas vazadas a um jornalista. “Tenho tanta confiança nele. As notícias falsas estão atrás dele, realmente atrás dele, mas ele é um sujeito durão. Eles não sabem o quão durão ele é”, disse Trump, chamando o auxiliar ao palco.
Nesses cem dias, Trump tem criticado Biden e feito ataques frequentes ao Judiciário americano. A escalada da tensão levou acadêmicos e parlamentares a debater se os EUA estão diante de uma crise constitucional ou à beira de uma.
Um dos pontos de divergência é relacionada à Lei de Inimigos Estrangeiros, invocada por Trump e que concede ao presidente autoridade para expulsar “inimigos estrangeiros” sem o devido processo legal, em casos de guerra ou invasão. A legislação, criada no século 18, só havia sido usada durante a guerra de 1812 contra o Império Britânico e suas colônias no Canadá, e nas duas guerras mundiais.
Em uma das frentes do caso, uma juíza determinou que o governo trouxesse de volta aos EUA o imigrante salvadorenho Kilmar Abrego Garcia, deportado de forma ilegal para El Salvador —o que a gestão diz não ter poder para fazer, a despeito da ordem judicial.
Além deste, há ao menos dez questionamentos à ordem que tenta revogar a cidadania por nascimento para filhos de imigrantes indocumentados, já considerada inconstitucional por tribunais federais.
O governo também enfrenta ações contra decretos para punir cidades-santuário (mais receptivas para imigrantes), fazer remoções aceleradas, o fim do aplicativo que facilitava o agendamento de audiências com autoridades de imigração, a revogação de status de proteção temporária e refúgio a imigrantes e a transferência de migrantes para a base militar de Guantánamo.
Trump sempre foi crítico de juízes que contrariam seus interesses, tanto na primeira gestão quanto no período fora da Casa Branca, também acusando investigadores de agirem politicamente.
Por trás dos ataques disparados pelo republicano está a discussão sobre até onde vão os poderes do Executivo, algo que ele tem buscado ampliar. A avaliação de analistas é que deve caber à Suprema Corte, com seis juízes conservadores entre seus nove integrantes, definir esses limites da atuação do presidente e eventualmente dar nova interpretação ao que prevê a lei.
Julia Chaib/Folha de S.Paulo