Houve um tempo em que a madrugada vinha anunciada pelo canto das saracuras. Eram os tenebrosos tempos owari/uragânicos. Elas se enfileiravam na beira do Laranja Doce como quem vigia a dignidade da terra. Era nelas que eu confiava quando precisava escrever algo sério, limpo, imune ao bafo das assessorias e ao cheiro de mofo dos plenários. A saracura não mentia. Era dura, direta, aguda — como deve ser a palavra quando tem compromisso com a verdade.
Mas os tempos mudaram.
A política virou balcão. A militância virou emoji. E o jornalismo virou produto de nicho.
As saracuras, cansadas de alertar para quem não ouve, se recolheram. Ou talvez tenham sido expulsas pelos tanques de arrogância e os drones da ignorância.
Foi quando ele chegou: o urutau.
Silencioso, noturno, ancestral.
Abandonou a árvore velha da beira do rio e migrou comigo — da margem do Laranja Doce para a sacada onde hoje escrevo. Pousou numa árvore seca, bem debaixo da minha janela, como se dissesse:
“Fica tranquilo. Eu continuo cantando. Agora mais baixo, mas continuo.”
E é no ritmo desse canto sombrio e melancólico que observo o desfile grotesco dos nossos dias. O eco da Uragano ainda sussurra pelas paredes do Jaguaribe. A fumaça da Câmara Secreta, os camburões lotados, os nobres edis em fila para o banho de sol — todos ainda muito vivos na memória de quem tem mais de dois neurônios e uma conta de luz em dia.
Mas parece que a história não ensina — recicla patifarias.
Hoje, em vez de alianças programáticas, temos vereadores disputando “checões” como quem disputa sacola em liquidação de fim de feira. Tem vereador anunciando milhões no avião, feito animador de auditório. O mesmo sargento patriota, que só adentra o plenário enrolado na bandeira, como se o pano lhe desse o mínimo de decência que as ideias jamais ofereceram. E tem outro posando de “do povo” ao lado de um “uninho” maquiado com adesivos patrióticos — mas com a mala cheia de trapaça.
Não há mais militância, com raras e honrosas exceções, apenas cavalgaduras.
E não falo dos cavalos — que ao menos têm dignidade no trote e nobreza no olhar.
Falo de bípedes domesticados por cargos, que perderam o dom da indignação e agora mugem “trampo” como justificativa para toda imundície protocolar.
Gente que usa a bandeira como capa de invisibilidade moral. Que se orgulha de ir a Brasília tirar selfie com senadores que nunca pisaram em Dourados. Que distribui “checões” como se fossem oferendas à Saúde, mas com o único objetivo de curar a própria vaidade.
Enquanto isso, aqui embaixo, numa árvore seca, o urutau me observa. Canta para mim. Lembra que o silêncio também é denúncia. E que a noite, embora longa, sempre passa. Mas só passa para quem não dorme — para quem vigia.
E eu sigo.
Com o teclado nas mãos, o canto do urutau nos ouvidos,
e a certeza de que mesmo quando todos os microfones forem desligados,
a verdade encontrará um jeito de sussurrar pelas frestas da madrugada.
Porque a saracura me ensinou a gritar.
E o urutau, agora, me ensina a resistir em silêncio.