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quinta-feira, junho 19, 2025

“A revolta da natureza” ou o grito que fingimos não ouvir

Livro de Ermínio Guedes é o espelho quebrado que obriga a ver o que se recusa a enxergar. E que talvez permita, finalmente, juntar os cacos e reescrever o pacto original com a vida

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É paradoxal, mas é real: o animal mais inteligente do planeta é também o único capaz de cavar com as próprias mãos a cova onde pretende enterrar toda a sua espécie. E ainda faz isso achando bonito, premiando a destruição com lucros, medalhas e discursos sobre “progresso”.

Foi com essa ferida aberta — e sem esperar anestesia — que o engenheiro agrônomo Ermínio Guedes lançou, na última sexta-feira, na Casa da Cultura da UEMS, seu livro-manifesto “A Revolta da Natureza”. O título não é força de expressão. É literal. É denúncia. É quase um exorcismo.

O autor não se esconde atrás de fórmulas de laboratório nem da retórica de relatórios. Escreve com os olhos de quem viu, com o peito de quem sentiu e com a alma de quem — finalmente — se dá conta de que fez parte da engrenagem da destruição. Ermínio faz um mea-culpa raro e urgente, que poucos no seu meio ousariam encarar. “Estou arrependido”, diz sem rodeios. E acende o alerta: a crise não é apenas ambiental — ela é ética, social, econômica e espiritual.

Entre rezas e árvores caídas

O lançamento teve o peso simbólico de uma cerimônia xamânica. Coube ao cacique Getúlio, da Aldeia Jaguapiru, abrir o encontro com rezas e reflexões. Uma frase dele ainda ecoa no salão e, com sorte, nos corações:

“Cada árvore que cai é um ser humano que morre”.

Compositor da dor e da resistência, Laerte Tetila também esteve lá. O ex-prefeito de Dourados deixou a política partidária para mergulhar na poesia. E, junto com artistas como Paulo Portuga e Fernando da Gata, reforçou a trilha sonora do apelo que Guedes faz à consciência coletiva: ou mudamos agora ou seremos soterrados pelas cinzas da morada comum. É dele o prefácio do livro.

O gato preto na sala escura

Guedes propõe o que chama de “Desafio Educativo” — um convite a acender a luz da consciência ambiental, numa sala escura onde todos sabem que há um problema, mas fingem que não veem. Uma travessia: da economia carbonizada para a bioeconomia, da lógica da destruição para o pacto com a vida.

As imagens que evoca são contundentes. Diz que o Brasil está se transformando num crematório ambiental, que o Pantanal seca por falta de água nos berços fluviais do Cerrado, que a Amazônia é hoje fonte de carbono, e que a Caatinga, o Pampa e a Mata Atlântica são fantasmas do que um dia foram.

Nada disso é teoria conspiratória ou lirismo de ecologista romântico. São dados, mapas, fotos de satélite e choros abafados nas aldeias, nos assentamentos e nas cidades que secam de dentro pra fora.

A natureza cansou de apanhar

O livro desmente o mito do agro “pop” e da monocultura salvadora. Aponta que a floresta em pé pode render mais que a soja ou o boi, e que o discurso de alimentar o mundo com commodities é tão verdadeiro quanto acreditar que refrigerante é suco.

Ele cita nomes como José Lutzenberger, Ana Primavesi, Carlos Nobre e o Papa Francisco, que avisaram — e continuam avisando — que a Terra está em modo revolta. E que a conta vem. Em forma de calor insuportável, enchentes apocalípticas, incêndios sem trégua, colheitas perdidas, doenças respiratórias e até o aumento de casos de autismo e câncer ligados à poluição e agrotóxicos.

Segundo Ermínio, a pandemia foi um castigo pedagógico, mas ignorado. O confinamento deveria ter servido de reflexão, mas muitos preferiram usar o tempo para espalhar fake news, consumir mais plástico e sonhar com carros maiores.

A memória das cinzas

Ermínio visitou 25 municípios de Mato Grosso do Sul, em dez anos de andanças, tentando construir uma pedagogia do reencontro com a natureza. Viu esperança em feiras de orgânicos, mas também desolação em cidades que encolheram por exaustão ambiental. Glória de Dourados, por exemplo, perdeu 30 mil habitantes em meio século — e boa parte da esperança junto com eles.

Na Serra de Maracaju e na Bodoquena, a soja chegou como tsunami, derrubando tudo: árvores, tradições, nascentes e futuros. Em Nioaque, um santuário biodiverso está na iminência de virar mais um capítulo do necrológio dos biomas.

Os netos de Gaia

O livro é dedicado às crianças e, particularmente, netos do autor. “Não como gesto de ternura apenas, mas como ato político e poético. Porque são elas que herdarão o mundo — ou o deserto — que deixarmos”, explica.

Ao final, Guedes invoca Gaia, a Deusa-Mãe, e pede que a natureza ainda nos permita renovar a parceria. Como quem sabe que o contrato está vencendo, e que não haverá aditivo se continuarmos a tratá-la como lixeira ou armazém.

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