Fui dormir esta madrugada estupefato com o discurso de Donald Trump, proferido poucas horas depois de ter ordenado o mais recente bombardeio americano ao Oriente Médio. As imagens dos B-2 lançando bombas sobre as instalações nucleares do Irã povoavam apenas as mentes aflitas, pois que nas telas, apenas o presidente dos Estados Unidos falava com a altivez de quem se vê como enviado divino — mesmo sem a autorização formal do Congresso para declarar guerra.
“Hoje, os verdadeiros patriotas mostraram ao mundo que a América não se rende. Não pediremos desculpas por defender nossa pátria dos monstros do terror.”
A retórica era antiga. A gravidade, renovada. O mundo, em estado de alerta.
Acordei ainda sob o impacto de tanta insanidade. Fiz o de sempre nas manhãs de domingo: tomei meu soco prates (como não lembrar dele, o sargento agora desembandeirado, nessas horas!) para descer dois “ovosquentados”, seguido de um café com leite — esse, mais para dissolver o pão integral de castanhas do que para me reconectar com a realidade.
Ato contínuo, me preparei para o ritual do Evangelho no Lar, essa espécie de escola dominical da Doutrina Espírita. E lá estava, como num improvável cruzamento entre algoritmos e mediunidade, a lição do dia: “Embainha tua espada.”
Sim, palavra por palavra, numa coincidente sequência cronológica, já na página 303 do livro O Evangelho por Emmanuel, nos comentários finais ao Evangelho segundo João, lia-se:
“A guerra sempre foi o terror das nações. Furacão da inconsciência, abre a porta a todos os monstros da iniquidade por onde se manifesta. O que a civilização ergue ao preço de séculos laboriosos de suor, a guerra destrói com fúria de poucos dias.” No caso de Trump, com a fúria de poucas horas — e o alcance de um B-2 sobre o Oriente Médio.
A espada que fala inglês (e responde em português)
Enquanto Trump bombardeia o Irã em nome dos “patriotas”, do outro lado do hemisfério, Jair Bolsonaro ouve e repete. Mesmo inelegível e enrolado até o talo com a Justiça, não perdeu tempo: compartilhou o discurso americano, exaltou a coragem do aliado ianque, e voltou a pedir anistia aos “patriotas do 8 de janeiro”, como ele chama os vândalos que queriam quebrar a democracia com Bíblia na mão e Código Penal nas costas.
Esse diálogo transcontinental de horrores nos revela algo: a palavra “patriota” virou um instrumento bélico. E como todo instrumento em mãos erradas, ela deixa de construir para destruir.
A guerra contra o idioma
Antes de ser sequestrada por lunáticos armados, tal qual a bandeira brasileira, “patriota” era só uma palavra altiva. Designava aquele que ama a pátria, serve à sua gente, respeita a Constituição. Hoje virou bordão de extremista, senha de golpe, hashtag de desinformação.
Nos EUA, patriota é quem aplaude um bombardeio sem justificativa. No Brasil, é quem ataca o STF de verde e amarelo, apoiado por Telegram e fake news. No dicionário político de 2025, patriota virou disfarce de bárbaro.
Por isso, o ContrapontoMS fiel à sua missão etimológica e semântica, com seu saracurismo transcendental — com o aval de Emmanuel e do bom senso — sugere a necessária atualização do verbete.
patriota
[Do grego patriótes. Substantivo de dois gêneros.]
- Pessoa que já amou a pátria antes dela ser loteada por radicais.
- Nos EUA, alguém que confunde segurança nacional com espetáculo bélico.
- No Brasil, bolsonarista raiz que marcha em nome da liberdade sem saber soletrar “Estado Democrático de Direito”.
- Indivíduo que considera Alexandre de Moraes um agente da KGB e que o STF conspira com Pequim.
- Sinônimo de “gado com orgulho”.
- Palavra repetida em discursos autoritários para blindar canalhices com verniz patriótico.
- Figurado:
a) Arma semiautomática de retórica extremista.
b) Palavra em decomposição semântica.
c) Meme com filtro de Brasília. - Regionalismo pernambucano (1817): revolucionário.
- Gíria sulista (1893): soldado do governo.
- Bras. – Gíria popular: Mulher de seios muito grandes.
- Atualização 2025: Termo usado por líderes que têm pavor de livros e fetiche por quartéis.
Em resumo, enquanto Trump lança mísseis e Bolsonaro lança postagens, é a democracia que vai se refugiando no silêncio. E, ao final da lição espírita, ecoava ainda a voz de Emmanuel: “Lança a espada na bainha. Segue com Cristo, que é o Príncipe da Paz.“
Mas no púlpito da Casa Branca, Cristo foi trocado pelo capeta com bonê “Make America Great Again” e seus generais. E na varanda de sua casa à margem do Lago Paranoá, em Brasília, um capitão saudoso do porão.