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quinta-feira, julho 24, 2025

Quando 4 toneladas de maconha viram farelo

O PCC já fatura mais com cartéis de licitações, hospitais, postos de combustível e cobrança de condomínio do que com maconha e cocaína. Enquanto isso, seguimos tratando cada apreensão como se fosse vitória de Copa do Mundo — e ignorando que o crime corre de terno, gravata e crachá de “empresário do bem”

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“Quatro toneladas de maconha apreendidas.” A manchete pipocou de novo, como tantas outras, nos portais de sempre. A droga, como de costume, nem foi apreendida aqui, mas em algum município vizinho à nossa exausta faixa de fronteira. E, como de praxe, celebrou-se mais um ato da rotina de segurança pública — essa coreografia desgastada entre fotos oficiais e declarações de efeito.

O problema é que essa dança tem muito mais silêncio que música. Porque no dia em que essas quatro toneladas foram apreendidas, quantas outras passaram enquanto os holofotes estavam voltados para o espetáculo midiático?

A conta não fecha — e o mapa só cresce.

Estamos no meio de um corredor do narcotráfico internacional. Um entroncamento logístico do crime, com ramificações para o Paraguai, Bolívia, Argentina, e para muito além. O Mato Grosso do Sul virou entreposto. Dourados, apenas um ponto de passagem — mas fingimos que não percebemos.

Eles já operam com supersônicos. Nós seguimos com bimotores do tempo do governo Garcia Neto, ainda no velho Mato Grosso. Eles trafegam em submarinos. Nós ainda comemoramos apreensão de saveiro. Eles articulam com inteligência artificial. Nós mandamos release de mototáxi com “guerra ao crime”. É assim que seguimos perdendo: achando que estamos vencendo porque estouramos meia tonelada num cruzamento — enquanto eles negociam bilhões em terminais portuários e aeroportos internacionais.

Do tráfico à institucionalização do crime

A questão é que o tráfico já nem é mais o item principal da planilha do PCC. O faturamento da facção, hoje, vem de áreas muito mais sofisticadas: cartéis de licitações para obras públicas, postos de combustíveis, instituições hospitalares, distribuidoras de gás, e até cobrança de condomínio nos territórios que controla. É o crime incorporado à legalidade, protegido por contratos, empresas de fachada e parcerias com engravatados.

Segundo o Ministério Público de São Paulo, o PCC já tem presença em 28 países, com mais de 2 mil integrantes fora do Brasil, quase mil foragidos, e uma estrutura de mais de 100 mil membros e contratados ao redor do mundo. Movimentam mais de US$ 1 bilhão por ano. O nome do jogo já não é mais “narcotráfico” — é economia paralela com status de holding global.

E nós seguimos tentando deter isso com viaturas surradas, trincheiras improvisadas e entrevistas coletivas.

O juiz-herói e o rastro de uísque

Não é por falta de coragem que chegamos até aqui. Houve, sim, um tempo em que a fronteira tinha nome e sobrenome no combate ao tráfico: juiz Odilon de Oliveira. O juiz dormia dentro do fórum, revólver sob o travesseiro, porque sequestrava bens, assinava sentenças pesadas, enfrentava cartéis com o destemor dos que já fizeram as pazes com o perigo. Era temido. Era respeitado. Virou até personagem de cinema.

Mas a história ganhou um giro desconcertante.

Ao deixar a toga para entrar na política, Odilon procurou abrigo sob a asa de quem menos se esperava: Jamil Name, um dos mais temidos chefões do submundo sul-mato-grossense. Jamil, que acabaria morrendo preso em presídio federal, era personagem central de uma rede de corrupção e violência. Segundo os autos, foi também um dos grandes articuladores e financiadores da estrutura que Odilon combatia.

Mas, um dia, um uísque selou o acordo. Um aperto de mãos. Uma chapa foi montada. E o herói virou aliado — ou, na melhor das hipóteses, espectador — de tudo aquilo que jurou combater.

Hoje, um filho e um sobrinho de Jamil desfilam garbosos como deputados estaduais, no Palácio Guaicurus, vizinho do Palácio do Tribunal de Justiça, de onde pouco se ouve sobre o assunto. O crime se adaptou. Saiu das celas, entrou nas urnas. Trocou a quadrilha pela coligação. E, de quebra, virou benfeitor.

Nós, os peões e o helicóptero da PF

E nós? Seguimos aplaudindo apreensões como se fossem vitórias definitivas. Seguimos assistindo helicópteros da PF sobrevoar a cidade como show aéreo em dia de festa cívica. Seguimos prendendo peões, mulas, atravessadores — enquanto os reis e rainhas movimentam milhões em silêncio, trajando ternos italianos, andando em Hilux blindada e discursando sobre “família e progresso”. Tudo junto e misturado, autoridades banqueteando-se com contraventores.

A cada tonelada apreendida, a pergunta deveria ser: quantas passaram? E por que continuam passando?

Enquanto isso, o PCC aperta mãos da máfia italiana, fecha negócios com cartéis nigerianos, opera em portos da África, da Europa e até da Austrália. Onde há contêiner, há risco. Onde há porto, há rota. Onde há rachadura institucional, há infiltração. E onde há silêncio conveniente, há cumplicidade disfarçada de ignorância.

Até quando?

O verdadeiro perigo não está nas cargas que aparecem na foto oficial — está na estrutura que opera por dentro dos sistemas, com selo de empresa, contrato assinado e capital legalizado.

O perigo maior não é o tráfico. É quando o tráfico e os grandes traficantes deixam de ser notícia.

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