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quarta-feira, julho 30, 2025

Nas sombras da memória

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Calças compridas de tergal, camisa branca de mangas compridas, anda apoiado em uma bengala. Usava óculos para enxergar com o único olho “bom”. Agora, aos 95 anos, com ou sem óculos, dá na mesma. Então, por que usá-los?

Por baixo da camisa, quem o ajuda pode sentir o osso do braço — só osso. “Pele e osso”, dizia ele, quando ainda tinha consciência, zombando de si mesmo. Que consciência tem de si agora?

Levou um susto ao perceber que estava esquecendo nomes, palavras, que já não se lembrava de todos os filhos, netos… que estava se “esquecendo”. Pediu que fosse feita uma reunião familiar, na qual falou sobre como via a partilha de seus bens entre os filhos. Não explicou que estava perdendo a memória, mas os filhos presentes entenderam.

Sentia-se cansado. Já havia “enterrado” os pais, os irmãos, a irmã. Era o último. Não sobrara ninguém mais da família original. Sentia isso. Não porque convivessem frequentemente, mas como constatação de que ainda estava ali, “sem conseguir” assumir suas responsabilidades. Para que, então, seguir presente? Parou de querer comer. Por falta de apetite ou por ter desistido de ficar?

No cotidiano, o que percebe do mundo? Com as forças esvaídas, passa os dias diante da televisão, sentado numa poltrona confortável. Precisa de ajuda para tomar banho, para chegar ao banheiro a tempo.

“Quem fui eu, e agora esse traste?”, dizia uma cunhada um pouco mais velha que ele. Um constato que a fazia chorar em seus momentos de lucidez.

Como seguir adiante? Os filhos tentam estar presentes — mais ou menos, conforme suas preocupações e compromissos. Alguns sabem que, embora ele pareça ausente pela perda da memória, uma dimensão emocional e sensorial pode estar parcialmente ativa. Nunca tiveram essa experiência. Precisam aprender a lidar com essa nova realidade.

Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.

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