Dourados se prepara para ganhar mais um cartão-postal do consumo: um shopping center erguido de ladinho da maior aldeia urbana do país, a Jaguapiru-Bororó. Milhões em investimentos, praça de alimentação pululando, galerias de grife, cinema com telas gigantes e ar-condicionado que promete refrescar até a culpa social. Um “vizinho ilustre” que, no discurso empresarial, simboliza progresso; mas que, para quem olha da garupa da bicicleta ou do lombo do cavalo, pode ser apenas mais um muro a contemplar. E a pergunta que antecede a inauguração: os índios poderão entrar?
tem pão velho?
não, criança
tem o pão que o diabo amassou
tem sangue de índios nas ruas
e quando é noite
a lua geme aflita
por seus filhos mortos.
Quarenta anos depois, o eco do poema de Emmanuel Marinho ainda se mistura ao som da catraca das bicicletas rangendo, dos cavalos magros, das carroças que cruzam a cidade em busca de restos e comida. As crianças ainda batem palmas nos portões — não é aplauso, é pedido. E o silêncio das respostas dói mais que o estômago vazio.
O mundo lá fora disputa quem tem mais mísseis e satélites; aqui dentro, ainda falta água encanada. O planeta fala em inteligência artificial e metaverso; aqui, a estatística de suicídios indígenas se confunde com a de homicídios. O país exporta soja e carne para meio mundo; mas no asfalto que circunda a aldeia, sobra só o cheiro do pão dormido.
tem pão velho?
não, criança
temos comida farta em nossas mesas
abençoada de toalhas de linho, talheres
temos mulheres servis, geladeiras
automóveis, fogão
mas não temos pão.
No marketing urbano, Dourados é “cidade-polo”, “terra de oportunidades”.
Na vida real, aldeias e condomínios fechados dividem a mesma fronteira — mas separados por muros. Altos muros. Visíveis e invisíveis. Lá dentro, guaritas e câmeras.
Cá fora, palmas pequenas contra portões altos.
O shopping vai nascer moderno, tecnológico, imenso.
Mas quem vai atravessar suas portas?
Será espaço de encontro ou vitrine de contrastes?
Os filhos da aldeia entrarão como consumidores, trabalhadores ou curiosidades turísticas?
tem pão velho?
não, criança
temos asfalto, água encanada
supermercados, edifícios
temos pátria, pinga, prisões
armas e ofícios
mas não temos pão.
Talvez a crônica pareça repetição — mas é o Brasil que repete a tragédia. Um país que constrói hidrelétricas e deixa aldeias no escuro. Que ergue estádios, mas não garante escolas. Que exporta aviões, mas não leva saneamento até as reservas.
As crianças das aldeias continuam batendo palmas. E cada palma carrega o peso de uma pergunta que o progresso insiste em não responder: se nem o pão velho chega, de que vale o shopping novo?
