Há 71 anos, o presidente Getúlio Vargas apertava o gatilho contra o próprio peito no Palácio do Catete. Não era apenas o gesto desesperado de um homem acuado pela crise política; era também a última cartada de quem não aceitava que a corrupção, ainda incipiente, já começasse a enlamear o tapete de seu gabinete. Um ato trágico e simbólico, que permanece como cicatriz aberta na história do Brasil. Antes de Lula, tido por muitos como o maior estadista da República, foi Getúlio quem ousou projetar um país com justiça social, direitos trabalhistas e visão de desenvolvimento para regiões até então esquecidas, como o Centro-Oeste.
Aqui, na Grande Dourados, o nome de Getúlio não está apenas nos livros, mas na raiz das picadas abertas no Mato Grosso do Sul ainda no útero do velho Mato Grosso. A Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a velha CAND, sediada onde hoje é a Vila São Pedro, foi o primeiro grande projeto de reforma agrária do Brasil, ao lado de sua irmã em Ceres, Goiás. Foi ali que chegaram os primeiros nordestinos, famílias inteiras empurradas pela seca e pela fome, que encontraram em Dourados uma promessa de terra e dignidade. Das linhas e travessões que delimitavam os lotes da CAND pulverizaram-se povoados, que viraram distritos, que se transformaram em municípios. Assim nasceram a Vila Brasil, hoje Fátima do Sul, e a Vila Glória, hoje Glória de Dourados, sustentáculos de uma região que pulsa como coração agrícola do Estado.
Não se pode falar de Getúlio sem lembrar Juscelino Kubitschek, o presidente que, em cinco anos, ousou prometer cinquenta e cumpriu mais que isso. JK levou o Brasil para o futuro, ergueu Brasília no Planalto Central, abriu estradas e deu à ideia de desenvolvimento uma concretude quase mágica. Ao lado de Getúlio, representa a linhagem dos presidentes que não se limitaram a administrar a mesmice, mas que criaram símbolos, legados e horizontes.
E até mesmo na ditadura militar, marcada pelo arbítrio e pela violência, houve um gesto de grandeza em meio às trevas: o do general Ernesto Geisel, que abriu, lento e gradual, o caminho para a democracia. Geisel não foi um democrata por vocação, mas teve a lucidez de perceber que o regime não se sustentava, e que era preciso iniciar uma distensão para devolver ao país, ainda que a conta-gotas, a vida política que a farda tentara sufocar.
De Getúlio a JK, passando por Geisel, a história do Brasil é marcada por homens que, com todas as contradições, souberam interpretar o momento histórico e, de alguma forma, conduzir a nação para além do abismo. Hoje, no entanto, assistimos ao espetáculo grotesco do bolsonarismo golpista, que confunde a Presidência com um palanque de seitas, que despreza a democracia, que faz da pátria uma caricatura de seus próprios delírios. Como gosta de repetir o presidente Lula, “nunca antes na história” o clima foi tão tenso. E não é exagero: as trapalhadas de ontem, hoje e amanhã desse ex-capitão e de seus devotos continuam flertando com a instabilidade institucional, como se o Brasil fosse brinquedo de vaidades e ressentimentos.
A bala que perfurou o peito de Getúlio ainda ecoa como advertência. Ecoa nos corredores do Catete transformado em museu, ecoa nas linhas abertas da CAND, ecoa no concreto da Mão do Braz, ecoa até na estátua de bronze varguista exilada para a saída de Itaporã. Ecoa também nas ruas de Fátima do Sul e Glória de Dourados, de Ivinhema, Angélica (o último distrito a ser emancipado) até Naviraí, que são prova viva de que da tragédia pode nascer vida, progresso e futuro. O que não ecoa — ou não deveria ecoar — é o som da irresponsabilidade, da farsa e da tentativa de repetir aventuras autoritárias. Que se aprenda, de uma vez por todas, que com democracia não se brinca, porque ela, ao contrário da bala no peito de Getúlio, é a única capaz de manter este país inteiro em pé.
