“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
— Ruy Barbosa
Se a frase da Águia de Haia parecia condenada a enfeitar teses de gabinete e discursos de formatura, em pleno 2025 ela voltou com cheiro de pólvora e suor de fazenda. Nesses tempos em que Brasília trama PEC de blindagem — que bem poderia se chamar PEC da bandidagem — e sussurra anistia a golpistas e corruptos, o governador Eduardo Riedel resolveu remar contra a corrente e decretar o inimaginável: o fim da mamata com dinheiro público por meio da criação do Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos do Estado (CIRA-MS).
Não é pouca coisa. Estamos falando de um Estado onde, por décadas, regimes especiais da Secretaria da Fazenda viraram caixa-preta de privilégios e propinas, e onde notas frias atravessavam mata-burros como se fossem boi gordo em comitiva, irrigando fortunas que ainda hoje enfrentam bloqueios judiciais. Muitos desses “empresários” seguem no palanque do governo, alguns até com passagem pelo xilindró, outros posando de conselheiros de ocasião. Ao descolar sua imagem desse círculo viciado, Riedel não apenas afronta aliados poderosos, como fica à vontade para a responder à incômoda pergunta que sempre paira sobre governantes: diga-me com quem andas que te direi quem és.
A solenidade na Governadoria teve discurso afinado, mas cada palavra soava como dinamite na planilha de quem sempre mandou na Fazenda estadual. “Houve um debate intenso para criação deste comitê. Cada vez mais nossas instituições deve ter a capacidade de estar interligadas”, disse o governador, plantando uma semente que, se vingar, pode finalmente brotar em solo onde por muito tempo só floresceu propina bem regada.
O CIRA-MS nasce com musculatura rara: Poder Judiciário, Ministério Público, secretários, procuradores e presidentes de órgãos do Estado, todos reunidos para prevenir e reprimir crimes contra a ordem tributária, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro. A promessa é de ações conjuntas, cursos, seminários e investigações que possam recuperar ativos e, sobretudo, devolver um mínimo de isonomia ao jogo econômico.
Do alto da toga, o presidente do Tribunal de Justiça, Dorival Renato Pavan, não deixou margem à dúvida: “Não podemos aceitar concorrência desigual. Que este grupo consiga atingir seus objetivos”. E o procurador-geral de Justiça, Romão Avila Milhan Junior, carimbou: “Hoje é um dia histórico. Nosso objetivo não é criminalizar condutas empresariais, mas quebrar a concorrência desleal”.
Histórico, sim — mas só se não virar mais um decreto empoeirado. O desafio é transformar a boa intenção em ação concreta contra um sistema que sempre protegeu os grandes enquanto cobrava pedágio do pequeno. O secretário-adjunto de Fazenda, Jean Neves Mendonça, e a procuradora-geral do Estado, Ana Carolina Ali Garcia, reforçaram a promessa de trabalho estratégico, integrado e cooperativo. Palavras não faltam; o que falta é ver se haverá coragem quando os primeiros medalhões do agronegócio, da indústria e do comércio começarem a chiar.
Porque a história de Mato Grosso do Sul, até agora, tem sido escrita com a tinta grossa da sonegação e o carimbo dos conchavos. Se Riedel resistir à pressão terá dado um passo raro: contrariar aliados e mexer no vespeiro da elite que sempre fez do fisco seu brinquedo. Se ceder, será apenas mais um capítulo de vergonha no diário da Águia de Haia.
Por ora, vale registrar: no país do jeitinho, em meio ao risco de anistias imorais, um governador ousa dizer não. E isso, num Estado acostumado a se envergonhar da honestidade, já é quase revolução.
