Em todas as redações por onde deixei minhas pegadas — rádio, jornal, TV — há 55 anos coleciono o mesmo tipo de despedida: não fui eu quem saiu, foi a tesoura que me levou. O nome muda — censura, corte, ajuste, “reformulação editorial” — mas a lâmina é sempre a mesma. Agora, na era do jornalismo online, inventaram uma nova modalidade de mordaça: a acusação de chantagem.
Sim, publicar malfeitos de políticos virou, na cabeça de muitos, um crime. No Brasil do espelho torto, quem expõe a sujeira é o verdadeiro sujo. E o que antes era poder público, hoje é poder particularíssimo, blindado por verbas generosas, destinadas a patrocinar os veículos amigos — aqueles que vivem de joelhos, posando de independentes, mas faturando com as loas aos poderosos nas colunas sociais. Não importa o conteúdo, importa a audiência de redes sociais, mesmo aquelas infladas por impulsionamentos, pagos pelos próprios clientes.
O ContrapontoMS, o veículo mais processado pelos políticos e empresários corruptos de Mato Grosso do Sul (título que, convenhamos, tem seu valor histórico), vem sendo alvo de ameaças veladas. O pecado? Fazer jornalismo. Ou, como preferem os ressentidos do poder, “fazer chantagem”. E tudo porque este velho repórter, de alma insubordinada, insiste em aproveitar os ganchos que a lida profissional oferece — uma devassa da Polícia Federal aqui, um processo dormitando no STJ ali — e deles extrair o mínimo que os plantonistas do poder consideram “suportável”.
Pois é, a mais recente Operação da PF revelou um espetáculo digno de Nelson Rodrigues em sua fase mais perversa: um esquema de compra e venda de sentenças no STJ, onde o teatro jurídico se confunde com o balcão de negócios. E, como todo bom drama brasileiro, sempre há um personagem reincidente com os bolsos cheios e a memória curta.
Para os que acham que há perseguição sistemática contra o ex-governador Reinaldo Azambuja, ofereço dois exemplos de como o bom jornalismo nasce de algo simples: o gancho. Essa palavrinha mágica que, para os colegas domesticados por verbas oficiais, talvez soe como grego antigo. Gancho é aquilo que dá sentido à notícia — e, por aqui, não faltam cabides para pendurar escândalos.
Vejamos o primeiro: a vinda a Campo Grande do presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, oficialmente para negócios partidários, mas na prática para um retoque estético no couro cabeludo, sob as mãos milagrosas do doutor Baltazar Sanabria. Coincidência ou não, o mesmo cirurgião que devolveu alguns fios de dignidade ao cocuruto do fiel escudeiro de Azambuja, Sérgio de Paula, especialista em “acertos” fora do caixa oficial e, só por isso, já cotado para o Tribunal de Contas — esse abrigo de almas pragmáticas, sempre dispostas a servir pelo chefe, o coronel-rei Azambuja.
O segundo gancho, bem mais cabeludo, é a ironia histórica de que o próprio Azambuja talvez precise do doutor Sanabria em breve — não por vaidade, mas por desespero. Afinal, é difícil manter o cabelo firme quando a Polícia Federal ronda o STJ em busca das malas de dinheiro vivo que a JBS garante ter lhe entregado. Isto num estado em que roubar propina não é coisa de outro mundo.
E o que há de mais simbólico nisso tudo? O timing. Justo no momento em que o ex-governador resolve se filiar ao PL de Jair Bolsonaro, buscando abrigo sob as asas do presidiário-mor do bolsonarismo, estoura a devassa da PF. Uma dessas coincidências tão perfeitas que fariam inveja a meu escritor favorito, o grande “Gabo”, Gabriel García Márquez.
Como se não bastasse, o coronel-rei, atolado até as botas no pântano da lama asfáltica do antecessor André Puccinelli, tenta se vender como o paladino contra o “L-4”, o demônio barbudo petista. E, de quebra, ainda atira farpas contra o ministro Alexandre de Moraes, num gesto de desespero digno de tragicomédia — justo quando Donald Trump, o grande herói da extrema direita, dá um chega-pra-lá em Bolsonaro e, com uma fungada diplomática no cangote de Lula, em Nova York, revela que sua química política agora é com o presidente brasileiro, não com o ex-presidente, o presidiário.
Expor esse tipo de coisa acompanhando a cronologia dos fatos não é chantagem. É jornalismo — essa arte tão simples quanto perigosa de mostrar os dois lados, mesmo quando um deles prefere as sombras.
E se não escrevo aqui sobre o “lado bom” de Azambuja, é porque ele insiste em me negar o prazer da convivência com seu reflexo. Sim, também sou Azambuja, parente pobre e malquisto, mas com o defeito incurável de não saber abaixar a cabeça. Já lhe ofereci espaço, entrevista, até o contraditório — mas ele, dizem, é tinhoso que nem cavalo empacado.
Tinhoso, vingativo e, a julgar pelos últimos capítulos, cada vez mais careca de argumentos.
