Há quem diga que o Supremo vive às voltas com a República, mas talvez o diagnóstico seja mais íntimo: o Supremo vive às voltas consigo mesmo. Depois de enfrentar o bolsonarismo, condenar o ex-presidente e os comparsas de farda e gabinete, a Corte voltou a olhar no espelho — e, como em toda boa tragédia brasileira, o reflexo veio rachado.
A mais recente fissura tem nome e sobrenome: Gilmar Mendes e Luiz Fux, dois veteranos de toga e temperamento, que trocaram farpas nos corredores como quem lava roupa suja no meio da praça. Gilmar chamou o colega de “figura lamentável” e recomendou terapia; Fux respondeu “suspendo um julgamento” — o que, no Supremo, é a forma mais elegante de dar um tapa sem tirar a beca.
O pano de fundo, claro, é mais antigo que a ofensa. Fux e Gilmar nunca se digeriram bem desde os tempos da Lava Jato, aquele surto moral que prometeu purificar a República e acabou contaminando o Judiciário. Fux foi um dos que acreditaram na cruzada dos paladinos de Curitiba. Gilmar, o primeiro a apontar o messianismo de toga que ameaçava engolir a Constituição.
A história correu, o lavajatismo apodreceu, Moro virou réu — e agora, quando a Primeira Turma estava prestes a confirmar essa condição, Fux pediu vista. Gilmar explodiu. E a cena, para quem acompanha o roteiro, é quase um déjà vu: os dois continuam representando polos opostos de uma velha disputa sobre o que o STF deve ser — tribunal de garantias ou palanque de moralistas?
Mas o tempero novo dessa briga é o contexto recente. Fux foi o único ministro a votar a favor de Bolsonaro no julgamento da tentativa de golpe. Um voto solitário, mas eloquente: reafirmou que a lógica da exceção ainda respira sob as togas, que o moralismo judicial sobrevive em cantos e corredores da Corte. E agora, ao suspender o caso de Moro, Fux parece retomar o papel do justiceiro que protege seus velhos heróis de Curitiba — os mesmos que, um dia, o aplaudiram.
Gilmar, por sua vez, parece empenhado em enterrar de vez o cadáver da Lava Jato — mas o defunto insiste em mexer a perna. O entrevero, portanto, não é mera rusga de egos: é o retrato de um tribunal que ainda disputa consigo mesmo o sentido de sua história recente.
O STF que enfrentou o golpismo e defendeu a democracia é o mesmo que agora se fragmenta em rancores e recaídas. E talvez seja esse o preço de ter olhado demais para o abismo — o abismo também devolve o olhar, e às vezes com sarcasmo.
No fim das contas, a cena de agora é apenas o espelho devolvendo a imagem: Gilmar, Fux e a toga dividida entre o delírio e o cansaço. O Supremo, enfim, parece estar de volta ao seu próprio divã — e não há vista processual que suspenda essa terapia.
