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sexta-feira, dezembro 5, 2025

Crônica do Pantanal literário

Entre o rumor das águas e o sopro das palavras, o Pantanal pede que a arte o defenda — contra o fogo, o lucro e o esquecimento

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JOÃO PESSOA O Pantanal não é cenário, é personagem. Fala baixo, respira devagar, mas tudo o que toca se move em silêncio antigo. Há séculos, ele escreve — com suas águas, com o vento que curva as árvores, com a ausência que preenche o ar depois das chuvas. Agora, uma nova página se anuncia: a Bienal do Pantanal pode se tornar lei, um gesto público de reconhecimento de que a cultura também é forma de conservação. A deputada Gleice Jane quer oficializar o evento e inscrevê-lo no calendário do Estado, para que o Pantanal tenha, de dois em dois anos, um espelho onde ver sua própria voz.

Mas não basta celebrar. É preciso vigiar. Enquanto os livros se abrem e as crianças descobrem o som das palavras, há labaredas invisíveis rondando as bordas do mapa. O fogo volta, o gado avança, a soja se espalha onde antes corria um riacho. A ameaça das usinas de cana chega disfarçada de progresso, com cifras e fumaça, e poucos se lembram de que cada hectare tomado é um verso arrancado do poema do planeta.

A Bienal do Pantanal é mais do que um evento: é um chamado. Quando escritores, artistas e professores se reúnem em Corumbá ou em Campo Grande para falar de literatura e identidade, estão também falando de sobrevivência. A arte, nesse território de águas e fronteiras, é uma forma de resistência — contra o esquecimento, contra a pressa, contra o desmonte daquilo que ainda resta de sagrado.

O Pantanal não precisa que o salvem com discursos de gabinete. Precisa que o ouçam. E talvez a Bienal, ao ser oficializada, cumpra esse papel: o de manter acesa uma escuta coletiva, um compromisso estético e ético com a vida. A palavra é também uma nascente — quando flui, renova. Quando seca, o deserto começa.

Que os deputados, ao votarem o projeto, saibam que não estão apenas decidindo sobre um evento cultural, mas sobre uma política de afeto e pertencimento. Que compreendam que cada mesa literária, cada oficina de escrita, cada debate sobre leitura é uma barragem simbólica contra a devastação. Que percebam que entre um poema e um pássaro há mais semelhança do que parece: ambos sobrevivem do ar limpo.

Até porque o Pantanal não é apenas território: é também mito. Já foi o Mar de Xaraés, oceano interior de lenda e espelho, cantado por viajantes e poetas. Um mar que, séculos depois, desaguou em samba-enredo — quando o Salgueiro, na Sapucaí, levou o Pantanal ao coração do Brasil. Era o tempo do governo Zeca do PT, e o mito se fez tambor, cor e metáfora. Desde então, cada cheia parece lembrar que o mar não foi embora: apenas aprendeu a viver por dentro da terra.

O Pantanal é, pois, o livro mais antigo que o Brasil ainda tem aberto. Se deixarmos que o fogo o queime, não sobrará palavra que o reescreva.

E talvez, quem sabe, a Bienal do Pantanal — agora reconhecida por lei — seja o modo mais bonito de lembrar a nós mesmos que o planeta também lê o que fazemos com ele.

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