Dizem que todo doido tem sua lógica — e que todo político tem a sua fé, ainda que seja fé em si mesmo. Foi movido por essa curiosidade antiga, meio jornalística, meio poética, que parti rumo à Paraíba, terra onde Ariano Suassuna conseguiu transformar a miséria em metáfora e a maluquice em sabedoria.
Ao chegar à Taperoá, o sol parecia brilhar de um jeito mais debochado, como se risse de quem tentasse entender o mundo. Pelas ruas, nas feirinhas de artesanato, nos corredores da Universidade Federal da Paraíba, onde acompanho um Congresso, e no calçadão da praia onde fiz questão de pegar um apartamento de frente para o mar, o vento sussurra os causos do mestre Ariano — como o do doido posando de imperador e exigindo que um colega lhe batesse continência, o do que estava parado sob sol escaldante, com o ouvido colado num muro, no que foi imitado por alguns curiosos, até que o último deles, cansado, disse não estar ouvindo nada, ao que ouviu do doido: “estou aqui desde cedo e também não estou ouvindo nada”; e o terceiro doido que empurrava uma carriola virada pra baixo, para não precisar carrega pedras.
Foi ouvindo essas histórias que o cronista insubordinado constatou: em Dourados, no Mato Grosso do Sul, o mesmo teatro se encena todos os dias, apenas com outros figurinos.
O primeiro ato se passa no grande palco da política estadual. Londres Machado, o decano dos decanos, no papel de Napoleão pantaneiro. De terno gasto, mas com ares de farda imperial, já não disputa eleição: renova o mandato por hábito e sobrevida. E quando cruza com Azambuja no saguão do Guaicurus o agora candidato à coroa ousa perguntar quem o nomeou pra tanto poder. Londres, curto e grosso, responde recorrendo ao Evangelho lido por ordem de dona Ilda Salgado:
— “Jesus Cristo.”
E Azambuja, com meio sorriso de incredulidade, devolve:
— “Eu?”
A plateia ri, mas é um riso nervoso. Porque por trás da piada mora a verdade: em certas paragens, o poder é hereditário, e o delírio, vitalício.
No segundo ato, o cenário muda: o palco agora é uma janela do casarão da rua João Rosa Góes, antiga sede da prefeitura de Dourados. Do lado de fora, o vereador Azola do Burro encosta o ouvido, curioso, tentando decifrar a articulação secreta do prefeito Braz Melo. Lá dentro, tramavam a escolha do sucessor, e o burburinho era tão enrolado que parecia o nada em forma de som. Azola escuta, escuta, e quanto mais escuta o nada, mais acredita estar ouvindo um chamado.
O assessores, vendo a cena, começam a imitar o gesto — e logo há uma fila de curiosos encostando o ouvido na janela. Até que Azola, tomado por uma fé repentina, adentra ao gabinete e anuncia, triunfante:
— “Seu Braz, não se avexe mais! O nome que o senhor procura sou eu!”
Talvez por isso, de tanto ouvir o vazio, convencido de que era o eco, Azola simplesmente sumiu do mapa da política, misteriosamente assassinado.
O terceiro ato se passa nos bastidores da Secretaria de Obras, durante a administração de Alan Guedes. Lá, pelo jeito, cada servidor empurrou sua carriola com a caçamba virada pra baixo durante quatro longos anos. É filosofia prática, aprendida no chão quente da cidade: “Assim ninguém tapa buraco direito, é só casca de ovo.”
E enquanto todos se livram do peso alheio, Marçal Filho sobe leve, alado — alô você! — rumo à glória eterna, conforme o bordão da Globo, nesta quarta-feira, na expectativa do fervor de um gol do Flamengo na Libertadores.
“É campeão!”, gritam as vozes da tela. E o povo aplaude, sem saber bem se é futebol, fé ou política — que, em Dourados, dá tudo no mesmo.
O insubordinado observa tudo isso aqui em João Pessoa e ri. Não de deboche, mas de reconhecimento. Porque o que Ariano via em seus doidos, ele vê nos políticos do seu tempo: uma mistura indissolúvel de astúcia e delírio, de esperteza e ingenuidade, de farsa e fé.
No fundo, Taperoá e Dourados são a mesma cidade em dois espelhos: numa, a loucura é poesia; noutra, é programa de governo. Na terra de Ariano o doido acredita ser Napoleão; Na terra de seu Marcelino o político acredita ser eterno. Na Paraíba, o homem escuta o nada; No Mato Grosso do Sul, o povo acredita no mesmo. No Nordeste, o sujeito empurra a carriola pra não carregar peso; No Centro Oeste, empurra o tempo até a próxima eleição.
E sentado à sombra de um juazeiro imaginário, o insubordinado sorri e conclui:
Ariano estava certo — o Brasil não é trágico nem cômico, é apenas real.
Mas se ele tivesse vivido o Mato Grosso do Sul de hoje, diria que o real é só o disfarce mais elegante da nossa loucura organizada.
Vou descer ali para tomar uma água de coco, enquanto a maré não abaixa. Porque o jeito é rir pra não enlouquecer de vez, e amar esse país mesmo sabendo que ele é, antes de tudo, uma comédia em capítulos infinitos.
