Outro dia, na padaria do fuxico, alguém me perguntou se Chico Buarque ainda canta as mesmas músicas. Respondi que não. Quem continua desafinando é o Brasil. Chico é o cronista que não precisou mudar a letra pra continuar atual. O país se encarregou de manter o roteiro — trocando apenas os figurinos e os generais. Se antes o medo vinha de coturno, hoje ele chega de terno slim e discurso de liberdade. Mas o som é o mesmo: o ruído da censura, disfarçado de opinião.
Nos anos 70, bastava cantar “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” pra irritar um general. Hoje, basta defender vacina ou escola pública pra irritar um influenciador.
A diferença é que, na ditadura, a censura tinha carimbo; agora, tem curtidas.
Chico sempre escreveu com uma dor civilizada. Falava de amor e saudade, mas todo verso carregava pólvora.
“Cálice” parecia prece, mas era grito.
“Meu Caro Amigo” soava carta, mas era exílio.
“Geni e o Zepelim” parecia fábula, mas era diagnóstico.
E talvez nada descreva melhor o Brasil do que essa última canção. Porque aqui a Geni continua sendo apedrejada — todo dia — por salvar quem a condena. O país moralista continua exigindo pureza enquanto negocia propina. A diferença é que agora o apedrejamento é online, com hashtags e indignação patrocinada.
Naquela época, Chico precisava escrever “Pai, afasta de mim esse cálice” pra escapar da tesoura da censura. Hoje, nós precisamos respirar fundo pra escapar da overdose de absurdos.
Na ditadura, usava-se metáfora pra sobreviver, como as receitas de bolo para cobrir o espaço dos textos censurados. Agora, usa-se meme pra suportar.
E é curioso como a história se repete, mas com mais ironia que tragédia. O Brasil, esse eterno aluno repetente da democracia, vive de prometer recomeços. A cada eleição, surge um novo “messias” com um novo “plano de salvação”, e a gente, como sempre, acredita que “apesar de você” o amanhã vai chegar. Mas quando amanhece, o país continua em “construção”. O pedreiro, cansado, ainda morre na contramão, atrapalhando o tráfego.
Chico dizia que o artista tem de estar onde o povo está. Mas parece que o povo foi ficando longe — entre boletos, apps de entrega e sonhos parcelados em 24 vezes. O poeta continua lá, cantando na esquina, mas quase ninguém ouve. O barulho do noticiário é mais alto.
E, ainda assim, o velho truque da esperança resiste. Entre uma notícia e outra, alguém posta um trecho de “Apesar de Você” e a gente volta a acreditar, por alguns segundos, que o amanhã há de ser outro dia. Depois lembra que amanhã é segunda-feira — e o país ainda é o mesmo.
Chico segue cantando, nós seguimos esperando o refrão mudar.
Mas talvez ele já tenha nos avisado há muito tempo: “Acorda, amor, eu tive um pesadelo agora mesmo… sonhei que havia gente lá fora.” E havia mesmo.
Gente com fome, medo, e vontade de acreditar que a canção ainda pode salvar alguma coisa.
O Brasil continua sendo esse samba dissonante — desafinado, mas impossível de abandonar. E nós, teimosos, seguimos tentando cantar junto, mesmo quando o maestro já deixou o palco.
Porque, no fim das contas, a política segundo o poeta continua sendo isso: um país inteiro tentando rimar “esperança” com “vergonha”, e desafinando em dó maior.
