Quatro a cada dez crianças brasileiras não alcançam fluência na leitura no tempo previsto, o que impacta seu aprendizado e futuro; o caso de Ávyla evidencia a importância de políticas educacionais eficazes e apoio familiar na alfabetização.
Vo-cê-con-seg-le-e-er-i-ss-o? Pa-re-ce-fá-cil-né? Mas e se to-das-as-pa-la-vras-que-vo-cê-vê-fos-sem-sem-pre-as-sim, to-dos-os-di-as? É assim que é tentar ler. Agora, imagina ter essa dificuldade aos 10 anos. No Brasil, 4 a cada 10 crianças leem assim nessa etapa escolar, conforme o Indicador Criança Alfabetizada 2024.
Neste 14 de novembro, celebra-se o Dia Nacional da Alfabetização, data escolhida em homenagem à fundação do Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 1930.
Por muito tempo, era também assim que Ávyla via o mundo. As letras se embaralhavam, os sons não faziam sentido. A mãe, Haluska, ligava todos os dias para saber o que a filha tinha aprendido na escola. A resposta era sempre a mesma: “Nada, mãe. A professora não passou atividade hoje”.
A menina cursava o 4º ano do ensino fundamental em uma escola particular de Campina Grande, na Paraíba. Moravam na zona rural e, por causa do trabalho, Haluska precisou se afastar da filha por um período, deixando-a sob os cuidados dos avós. Quando voltou, percebeu que algo estava errado.
“Não saber ler, não saber, não aprender mesmo. Você via que a criança não estava aprendendo. Não sabia escrever, ou seja, ela realmente não estava aprendendo”, lembra Haluska ao Terra, que não esconde no olhar o sentimento de decepção e desespero por não saber o que poderia fazer para mudar aquele cenário. “Eu comecei a achar que ela tinha problema de aprendizagem”.
Mas a explicação não estava em um diagnóstico médico. Uma psicopedagoga amiga da família avaliou a menina e garantiu: “Ela não aparenta ter nenhuma dificuldade. Pelo contrário, ela tem uma dicção muito boa, ela é inteligente”.
A conclusão, no entanto, caiu como um golpe. “Aí, eu me desesperei mais ainda. Eu disse, então, é a escola”. Haluska conversou com familiares, expôs sua preocupação, mas a frase mais ouvida foi: “Espera, cada criança tem seu tempo”.
Como as notas de Ávyla continuaram baixas e a leitura não evoluía, Haluska tomou uma decisão que mudaria o destino das duas. “Eu falava para mim mesma: eu tenho que arrumar uma forma de botar ela para estudar em Queimadas (PB). Eu já tinha um monte de colega aqui que dizia, ‘olha, o ensino de Queimadas está ótimo'”.
“A alfabetização é a base. Então, eu me preocupava e eu não via saída, porque eu dizia, meu Deus, é o futuro dela. Ela precisa ter uma base boa para não sofrer futuramente”.
A alfabetização no tempo certo
Segundo Daniela Caldeirinha, vice-presidente de Educação da Fundação Lemann, a alfabetização aconteça até o 2º ano do ensino fundamental, é essencial não apenas para o aprendizado escolar, mas para a vida inteira.
“Essa etapa de alfabetização é superimportante para o desenvolvimento de todas as crianças, porque é uma condição necessária para garantir todo o aprendizado da vida. Quando a gente está nessa etapa, a gente aprende a ler, a escrever, a compreender os textos, e, no futuro, a gente lê para aprender”, explica Daniela.
Ela reforça que a neurociência e o desenvolvimento físico e emocional indicam que esse é o período mais adequado para aprender a ler e escrever. “Ter esse marco é importante porque orienta a prática pedagógica. A criança, para aprender a ler e escrever, começa esse processo muito cedo, ainda quando aprende coisas simples como segurar um livro e folheá-lo”.
“A gente tem dados que mostram aumento de evasão, de acúmulo de defasagem, então vai ficando mais difícil para o quinto ano, depois mais difícil para o nono ano. […] No longo prazo, tem a ver com a escola se tornar um lugar em que a criança não vê razão para estar”.
Conforme estudo do economista Ricardo Paes de Barros, o atraso na alfabetização se estende para além da vida adulta do indivíduo. A probabilidade de boa saúde entre não alfabetizados aos 35 anos é de apenas 56%. Já a chance de emprego formal gira em torno de 45%.
Impactos que também atingem os descendentes. Isso porque a probabilidade de um filho de pai analfabeto terminar o ensino médio com até um ano de atraso é de 38%. Entre os alfabetizados, o índice é de 69%.
Início da virada na vida de Ávyla
No início do 5º ano do ensino fundamental, Haluska largou o emprego como cuidadora. “Eu tomei a decisão radical de sair do trabalho, vir morar aqui e matricular ela. E foi um ano letivo maravilhoso, só de notícias boas, de muita evolução”.
Ávyla foi matriculada na Escola Municipal Beatriz Ernesto de Melo, uma das unidades da rede pública de Queimadas. Logo na primeira avaliação de fluência leitora, aplicada como parte do programa Parceria de Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC) — iniciativa apoiada pela Fundação Lemann e implementada em 18 Estados –, veio o choque: a menina estava no nível zero de leitura.
“Eu olhava pra tela e dizia, meu Deus, o nome de Ávyla tá ali. Ela tava lá embaixo, no nível zero. Eram pouquíssimos alunos, e eram justamente os que vinham de outras cidades. Eu me sentia culpada, mas ao mesmo tempo dizia: eu não tinha o que fazer”, conta Haluska.
Para Caldeirinha, avaliações como essa são fundamentais para orientar o trabalho em sala de aula. “Essa é uma avaliação superinteressante, porque ela dá muito insumo para o professor. A gente chama de avaliação formativa. Ela mostra rapidamente o nível de cada estudante e permite que o professor planeje o próximo passo. Se ele percebe que o aluno ainda lê picotando, sabe que precisa trabalhar fluência para melhorar a compreensão”, explica.
Essas ferramentas, segundo ela, ajudam a transformar dados em ação. “O professor consegue planejar a próxima aula com base naquele diagnóstico, capturado de forma rápida e frequente”.
Do nível 0 à fluência

Haluska e Ávyla após conquistar o nível 7 de habilidade – Foto: Arquivo pessoal
A realidade mudou rapidamente. Com apoio constante da escola, professores e funcionários, Ávyla mergulhou em uma rotina de estudos intensa. “Eu chegava lá às sete horas da manhã. Ficava até onze em sala. Depois almoçava, ia para o reforço até cinco horas da tarde. Quando chegava em casa, tomava banho, fazia as atividades e ia dormir”, descreve.
A mãe, por sua vez, acompanhava de perto o processo. “No início, eu ajudava diariamente. Mas chegou um ponto que eu não precisava mais — e eu também já não tinha mais o conhecimento para ajudar”.
O ambiente escolar, segundo Haluska, foi decisivo. “Nós não tivemos lá só o apoio do ensino. Tivemos também muito apoio emocional. Uma escola construída de amor. Eles são muito pacientes. Toda semana tinha leitura no pátio, com os funcionários lendo e incentivando as crianças. Foi muito tranquilo o processo”.
Ávyla lembra como era tentar ler, mas não conseguir juntar as palavras. “Eu ficava perdida, nervosa, chorava, porque eu não conseguia ler e eu tinha que ler. No começo eu achei muito difícil e, por conta da vergonha, eu parava muito. Aí, eu fui me acostumando”.
A virada ficou marcada pela “camisa da nave”, prêmio simbólico entregue aos alunos que alcançavam leitura fluente. “Eu acho que foi na segunda formativa, quando os pais foram chamados pra mostrar a evolução dos alunos e receber a tão sonhada camisa da nave, que era um sonho de muitos. Aí, a minha ficha caiu e eu passei duas semanas chorando”, conta Haluska. “Eu disse: olha aí, Ávyla lendo mesmo. Lendo, como tem que ser”.
Hoje, Ávyla está no 6º ano e já tem preferências literárias. “Eu gosto muito de ler poema e fábulas. Eu prefiro mais as fábulas, porque elas dão uma moral e eu gosto muito de textos assim”.
Para a mãe, ver a filha lendo é mais do que uma conquista escolar. “Ficar desempregada não é fácil, era assustador. Mas o que estava em jogo era o futuro dela. E valeu a pena demais”.
O desafio da alfabetização no Brasil
Para Daniela Caldeirinha, histórias como a de Ávyla revelam um problema estrutural da educação brasileira. “Tem um problema crônico no Brasil que tem a ver com a formação inicial dos nossos professores. Existe uma distância grande entre a formação que eles recebem na universidade e as necessidades reais da sala de aula. O professor fica muito solitário, lidando com desafios para os quais foi pouco preparado”, avalia a vice-presidente de Educação da Fundação Lemann, que também pontua problemas de infraestrutura e material pedagógico.
Por isso, ela defende que redes e secretarias de educação fortaleçam a formação continuada, dando ferramentas práticas e apoio constante. “Enquanto a alfabetização não for vista com centralidade, como uma agenda estruturante para o desenvolvimento do país, a gente vai continuar tratando-a como uma etapa qualquer”.
Segundo o Indicador Criança Alfabetizada 2024, apenas 59,2% dos alunos do 2º ano do ensino fundamental no Brasil conseguem ler e compreender textos simples — número um pouco abaixo da meta nacional, que é 60%.
Daniela explica que, apesar dos avanços, ainda há grandes desigualdades. “Na média, ficamos perto da meta, mas quando você olha individualmente, há estados com resultados muito bons, como Ceará, Goiás e Minas Gerais, e outros que ainda enfrentam grandes dificuldades. Também há diferenças dentro dos estados e entre crianças de raças diferentes. O patamar garantido para as crianças brancas não é o mesmo das pretas, pardas e indígenas”.
Indicador Criança Alfabetizada (2º Ano)
Percentual de alunos no 2º ano do Ensino Fundamental com padrão nacional de alfabetização. Dados de 2023 (Referência Alfabetiza Brasil 2024).

Em nota, o Ministério da Educação informa ter implementado o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA) para enfrentar os desafios históricos e estruturais que impactam a aprendizagem das crianças. A pasta afirma que já foram investidos mais de R$ 1,4 bilhão em ações de formação de profissionais, infraestrutura, gestão e sistemas de avaliação. Também destaca que adota uma abordagem baseada na equidade territorial.
Com isso, o Indicador Criança Alfabetizada já mostrou avanço — de 3,2 pontos percentuais em comparação a 2023. No entanto, Caldeirinha reforça a necessidade de seguir com o trabalhos como foco. Ela destaca o papel do regime de colaboração entre União, Estados e municípios para superar esses desafios.
“Alfabetizar é um dever de todos. O MEC coordena, os estados e municípios executam, e cada um tem um papel essencial. Esse modelo colaborativo é o eixo central das novas políticas de alfabetização”.
A Fundação Lemann, junto ao Instituto Natura e à Associação Bem Comum, aposta nesse modelo desde 2019. “Começamos com quatro estados e hoje são 18. Esse trabalho inspirou o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado em 2023. Quando olhamos para os resultados, já vemos um avanço real. E estamos muito animados para ver os dados de 2025”, afirma Daniela.
Fonte: Portal Terra
