“Navegar é preciso, viver não é preciso.” A frase, que atravessou mares e séculos, sempre serviu para lembrar que a arte da navegação exige técnica, precisão, rumo — enquanto viver, esse improviso permanente, dispensa manuais. Hoje, porém, num Brasil onde se arquiteta tentativas de golpe com punhais verde-amarelos, onde PCCs e CVs firmam tratados que nenhum chanceler ousaria assinar, onde nem o presidente da República, seu vice e ministros do STF desfrutam da “precisão” mínima de uma vida segura, essa máxima antiga ganha uma atualidade incômoda. Se antes parecia poética, agora soa literal: viver, neste país, não é preciso. Não é exato. Não é garantido. E justamente por isso, navegar — no sentido mais amplo de ler o mundo, interpretá-lo e tentar manter um rumo — tornou-se não apenas preciso, mas urgente.
Essa reflexão começou nessa quinta-feira chocha, dessas que fazem sentido apenas porque alguém resolveu inventar o #TBT. A memória me puxou para o final dos anos 1970, para o Caneca, o velho território sagrado da intelectualidade douradense, onde eu, o radialista Albino Mendes e o compadre Antônio Tonanni demos partida, entre goles e teimosias, à Grande FM — uma embarcação radiofônica que agora, décadas depois, finalmente ganha estúdios à altura, com direito à presença do governador Eduardo Riedel na reinauguração. Navegar era preciso naquela época, e éramos românticos o suficiente para acreditar nisso. Hoje, navegar continua sendo preciso — mas o mar mudou, o vento virou, e a bússola foi substituída por celulares que fazem o papel simultâneo de farol, boia, âncora e tormenta.
Pois são esses radinhos e televisõezinhas de bolso que nos informam, por exemplo, sobre como, quando e por que Roberto Razuk voltou para a cadeia. E desta vez levando junto dois de seus três filhos homens, só não levando o terceiro — o deputado estadual — porque a política oferece uma espécie de salva-vidas institucional ao estilo Parque dos Poderes: uma boia de impunidade flutuando serenamente entre a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Justiça. Razuk é apenas o rosto mais visível de um problema antigo. A contravenção penal no MS — esse nome civilizado demais para o que de fato é — nunca deixou de ser um mar turvo, onde navegam interesses, omissões, alianças e silêncios. A superfície muda, a espuma muda, mas o fundo é sempre o mesmo. E navegar por esse mar exige precisão; viver nele, no entanto, não oferece garantia alguma.
E essa sensação de instabilidade — de vida imprecisa — não é exclusividade do MS. O país inteiro parece fazer sua pior travessia política desde que descobriu que a democracia também pode naufragar. Golpistas tropicais, embalados por delírios messiânicos, acreditam que o caminho para o futuro cabe na bainha de um punhal e de uma live. Facções criminosas disputam território com o Estado como se fossem marinhas rivais. Ministros do STF recebem ameaças como quem recebe spam. Presidentes e vice-presidentes calculam cada passo como quem navega por um mar minado. Se a frase de Pompeu pretendia animar marinheiros, hoje ela serviria mais para brasileiros em geral: navegar ainda é possível — viver, só Deus sabe.
No meio desse oceano de incertezas, a política matogrossulense produz seus próprios náufragos e navegantes, alguns se agarrando a âncoras, outros fingindo remar, outros ainda cavalgando pangarés imaginários como se fossem garanhões épicos. E é curioso perceber como, mesmo nessa confusão toda, a comunicação continua sendo o nosso barco. A Grande FM nasceu quando comunicar era remar com vontade. Hoje, comunicar é remar contra a corrente de redes sociais que deixaram de aproximar para manipular, que deixaram de informar para inflamar, que deixaram de ser ponte para se tornar esgoto. A internet, que já foi porto e mar aberto, virou aquilo que Lúcia Guimarães descreve com precisão cruel, na Folha de S.Paulo desta quinta-feira: uma caca. Patrícia Campos Mello —a sobrinha de Antônio Tonanni molestada por Jair Bolsonaro com aquela história de dar o “furo”, de reportagem — completou o diagnóstico na mesma Folha com o conceito de “merdificação da rede”, que Doctorow cunhou com exatidão cirúrgica. E diante desse oceano contaminado, navegar — manter algum tipo de lucidez — é preciso. Viver nele, ao contrário, não é preciso.
No fim das contas, a antiga frase continua correta. Navegar é preciso porque exige técnica, atenção, leitura do vento, coragem diante da tormenta. Viver — especialmente viver no Brasil — continua sendo o território da incerteza absoluta. Mas talvez seja justamente por isso que insistimos em navegar. Porque enquanto o viver se debate no escuro, é o navegar — esse esforço consciente de buscar sentido — que nos impede de afundar de vez. A Grande FM nascer no Caneca foi navegação. Encarar Razuk, golpes, contravenções e redes sociais apodrecidas é navegação. Escrever, analisar, provocar, denunciar — tudo isso é navegação. E enquanto houver quem navegue, ainda existe alguma esperança de que o barco não vá a pique.
