Se no texto de ontem tratei de navegar em mar profundo — Razuk, contravenção, golpismo e a desconfortável certeza de que “viver não é preciso” — hoje aporto numa praia tão singular que o jornalista José Henrique Marques, da Folha de Dourados, garante que o segredo está na água. Isso mesmo: na água. Segundo ele, a antiga Cabeceira Alegre — hoje Jardim Ouro Verde, Canaã I, Vila Maxwell e adjacências — produziu ao longo das décadas uma sucessão de fenômenos políticos tão improváveis que só um geólogo, um psiquiatra e um benzedor de confiança poderiam explicar. E talvez nem assim dessem conta. A hipótese hidrogeológica, portanto, ganha sua nobreza, afastando a lenda da cabeça de burro enterrada aos pés do tenente Antônio João Ribeiro, na praça que leva o seu nome.
Porque, se tem algo que Dourados produz com abundância amazônica é fenômeno político instantâneo. Daqueles que sobem no feed como quem sobe num cavalo — sem nunca ter visto sela. E já que estamos falando de montaria, nada melhor do que revisitar o curral eleitoral mais curioso do Estado, que por coincidência (ou por contaminação) nasce todo ali, no mesmo bolsão hídrico.
Comecemos pelo mítico Azola do Burro, vereador folclórico que fazia campanha montado num jegue, empunhando uma raiz de mandioca como cetro, até ser assassinado de forma tão inexplicável quanto sua própria carreira meteórica. Depois veio Ari Valdecir Artuzi, o motorista que herdou a vaga do tio — o vereador Dioclécio Artuzi — e que ficou famoso despejando doentes numa Belina velha nas portas dos “hispitais”, como dizia. Simplicidade e analfabetismo não o impediram de se tornar deputado duas vezes — na segunda, o mais votado da história de Dourados — e depois prefeito. Um fenômeno. Até que a operação Uragano desabou sobre a cidade e levou de roldão Artuzi, seu vice, secretários, vereadores e praticamente toda a sua base de governo, num episódio que faria inveja a roteiristas de série policial.
Agora, na vitrine eleitoral douradense, os holofotes apontam para Isa Marcondes, a autoproclamada Cavala, dona de bordel, vereadora mais votada da última eleição e já tratada como deputada estadual por antecipação, como quem compra passagem antes do barco zarpar. No ritmo em que vai, falta pouco para atribuírem a ela o título de “fenômeno orgânico” — orgânico no sentido literal, daqueles que brotam da terra (ou dos poços).
E aqui entra a coindidência trágica da história: os três — Azola do Burro, Ari Artuzi (o “animal de pelo curto”) e a Cavala — são da mesma região. Beberam da mesma água.
Do mesmo aquífero político.
A teoria de José Henrique, portanto, não só procede como se impõe: talvez o problema de Dourados não seja sociológico nem político, mas hidráulico. Talvez a Cabeceira Alegre, de onde vem também o tal bichão MS (a deputada Lia Nogueira) seja o primeiro caso conhecido de lençol freático eleitoralmente alucinógeno. Talvez os poços artesianos tenham mais responsabilidade no destino da cidade do que as urnas. E talvez o eleitor douradense, sem saber, esteja apenas bebendo aquilo que o destino decidiu filtrar.
E falando em poços artesianos, não custa lembrar que muitos deles foram perfurados pela SANESUL — a mesma empresa de saneamento que já foi referência nacional de gestão nos tempos de Barbosinha e Waltinho Carneiro. Pois hoje, na narrativa conveniente de Isa Marcondes, a SANESUL virou bode expiatório oficial. Tudo que não funciona em Dourados — especialmente a malha asfáltica, antes de Marçal Filho, mais parecida com pista de rali do que via urbana — seria culpa da empresa. Buraco não é falha de gestão: é defeito “da água”. O asfalto que esfarela não é abandono do poder público: é “responsabilidade da SANESUL”. O caos viário virou consequência hidrográfica. Uma explicação tão criativa quanto coerente com a geologia política local.
No fim das contas, talvez a política douradense não brote das urnas — brota dos poços artesianos. E quando o asfalto cede, a culpa, claro, nunca é de quem governa. É da água.
Que a humanitária Cavala não tenha o mesmo fim trágico dos fenômenos equinos anteriores — Azola do Burro e Ari “animal do pelo curto” Artuzi. Um, assassinado misteriosamente; o outro, preso, obrigado a renunciar e, pouco depois, morto de câncer no intestino, praticamente abandonado pela própria cidade que o transformara em meteoro.
