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sexta-feira, dezembro 5, 2025

Morte de Elis Regina fez FHC se esquecer da política

'Chega de pacotes e reeleições', escreveu o futuro presidente em texto sobre a morte da cantora. Artigo faz parte de seção que republica colunas de grande repercussão da história do jornal paulista

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Fernando Henrique Cardoso escreveu sobre a morte de Elis Regina em coluna publicada na Folha de S.Paulo em 1982 — 13 anos antes do início de seu governo. Ele começou assim: “Hoje eu não quero escrever sobre política. Chega de pacotes, prorrogações, reeleições, sabujices de toda ordem”.

A cantora gaúcha havia morrido no dia anterior, aos 36 anos. O futuro presidente, então sociólogo e professor da USP, não a conhecera pessoalmente. Mas guardava um bilhetinho dela: “Será que vai receber meu voto sem nos conhecermos?”.

Elis havia feito um show e doado a receita para a campanha eleitoral dele ao Senado em 1978. “Campanha quase sem recursos. Mas os que vieram, vieram assim, no embalo da generosidade”, escreveu.

Fernando Henrique Cardoso não pôde ir ao show. “Estava imerso no cotidiano da campanha, sei lá por onde neste São Paulo imenso.” Enviou um livrinho de entrevistas à imprensa. E ficou “amargando, agora para sempre, a falta do abraço e do reconhecimento”.

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Elis Regina (21/1/1982)

Hoje eu não quero escrever sobre política. Chega de pacotes, prorrogações, reeleições, sabujices de toda ordem. Há dias em que, por respeito a sentimentos genuínos, não dá para perder tempo com tanto lixo, tanta desonestidade e tanta ousadia de mequetrefes que viram manchete de jornal por melhor servir ao Poder desservindo ao País.

Morreu Elis Regina.

Não cheguei a conhecê-la pessoalmente. Admirei-a de longe, como todo mundo. Recebi dela, certa vez, um bilhetinho que dizia: “Professor, será que vai receber meu voto sem nos conhecermos?” Foi no dia em que ela fez um “show” e doou a receita para ajudar a campanha eleitoral. Campanha quase sem recursos. Mas os que vieram, vieram assim, no embalo da generosidade.

Eu não pude sequer ir ao “show”. Estava imerso no cotidiano da campanha, sei lá por onde neste São Paulo imenso. Enviei a Elis um livrinho de entrevistas à imprensa. E fiquei amargando, agora para sempre, a falta do abraço e do reconhecimento. Anos depois, conversamos pelo rádio. Fiz-lhe uma pergunta genérica sobre sua participação na vida política e recordei, envergonhado, minha dívida: faltava aquele abraço.

Hoje dá tristeza. Elis Regina não se interessava por política no sentido banal. Era uma intérprete, como poucas, do sentimento que há nas ruas e em cada um de nós. Não sei se jamais fui “partidária”. Tinha, por certo, partido. Tomava partido. Em tudo: basta ouvir suas entrevistas. Sabia-se tímida, achava-se feia; era pequenina. E naquele peito, naquela voz, tremia muito sentimento. Das coisas fundamentais; das pessoais. No canto, não explodia revoltada contra a ordem injusta: não precisava. Bastava ser, como era, capaz do sentimento mais simples para, sem nada dizer, dizer tudo.

Parece que morreu no desespero. Por não saber e por respeito, é melhor não conjecturar. Morreu triste. A morte é sempre triste. Tinha, possivelmente, um livro em aberto de ajustes de contas pessoais.

Mas deixou esperança: um País que produziu, apesar de toda a canalhice que por aí reina, uma mulher capaz de ser mensagem, é mensagem captada por milhões de pessoas, sem nenhuma demagogia e de não precisar da retórica para que todos sentissem que ela era, era sim, parte da política verdadeira, dos que querem mudar tudo para que a tristeza não esteja sempre pontilhando o sucesso de cada um, não está perdido.

Eu choro hoje pelo abraço que não dei. Choro pelo que de sofrimento há espalhado nestas ruas de São Paulo de adeus e quem venceu sem encontrar o sossego. Mas enxugo a lágrima na certeza de que o estofo deste tipo de artista é o arcabouço de um mundo que, a despeito de tudo, ainda será construído.

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