No mesmo dia em que o Senado aprovou o Marco Temporal, reacendendo tensões históricas e recriando novos capítulos da disputa por terras tradicionais no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recebeu um documento que funciona como uma espécie de bomba-relógio moral para o país — e especialmente para Mato Grosso do Sul. O advogado e professor da UFGD, Tiago Botelho, integrou a comitiva que apresentou ao CNJ o relatório final do grupo de trabalho ligado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em cerimônia conduzida pelo ministro Edson Fachin, presidente do Supremo.
A entrega do relatório ganha significado ainda maior quando se olha para Dourados, cidade que abriga a maior reserva indígena urbana do Brasil, a Jaguapiru–Bororó, ao mesmo tempo em que convive com um cinturão de fazendas envolvidas em disputas fundiárias que se arrastam há décadas no Judiciário — algumas pertencentes a políticos de mandatos tão extensos quanto os próprios processos. Não por acaso, conflitos entre indígenas e proprietários rurais seguem sem solução definitiva, inflamados por decisões sobrepostas, omissões recorrentes e uma estrutura fundiária que nunca foi ajustada à realidade histórica da região.
Foi nesse contexto que Tiago Botelho, pesquisador e defensor da causa agrária, reforçou uma verdade que poucos dentro do Estado gostam de ouvir: a violência no campo não é acidente — é consequência direta das omissões estruturais do poder público. Em sua fala no plenário, ele foi categórico: “Não há como proteger defensoras e defensores de direitos humanos sem avançar na reforma agrária, na demarcação das terras indígenas e na titulação dos territórios quilombolas. Enquanto essas pautas estruturantes forem negligenciadas, a violência continuará sendo a resposta das elites que nunca aceitaram dividir terra e poder.”
O relatório entregue ao CNJ, resultado de dois anos de trabalho, faz exatamente isso: expõe as raízes da violência rural e propõe um conjunto de medidas para enfrentá-la. Recomenda aprimoramento nas investigações de ameaças, atentados e assassinatos, maior articulação entre órgãos públicos, capacitação de agentes e a criação de mecanismos de proteção específicos para lideranças em situação de risco. É, portanto, um documento que não se limita a diagnosticar problemas — aponta caminhos que exigem coragem institucional.
E essa coragem será necessária, sobretudo agora, após a aprovação do Marco Temporal, que restringe o direito à demarcação às terras ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988. Organizações indígenas, pesquisadores e juristas alertam que essa decisão legislativa — já contestada judicialmente — tende a exacerbar conflitos, legitimar ocupações pretéritas e gerar uma onda de judicializações e reintegrações traumáticas, especialmente em estados onde a disputa por terra é permanente, como Mato Grosso do Sul.
Para o Judiciário, o relatório do grupo de trabalho é mais que um texto técnico: é um espelho incômodo. Ele revela a lentidão de processos que se arrastam por décadas, a ausência de políticas de prevenção, a dificuldade de garantir proteção a lideranças ameaçadas e a tendência histórica de priorizar interesses fundiários sobre direitos humanos. Mostra que, enquanto decisões não enfrentarem as causas profundas do problema, o ciclo de violência seguirá se repetindo.
A participação de Tiago Botelho no grupo de trabalho reafirma sua posição como uma das vozes mais consistentes — e incômodas — da luta por justiça agrária no estado. Em um território onde discutir terra significa mexer em estruturas políticas, econômicas e familiares profundamente enraizadas, sua atuação é tão necessária quanto arriscada.
O relatório, agora nas mãos do CNJ, não resolve o passado — mas exige que o futuro seja enfrentado com responsabilidade. E coloca diante do Judiciário e do país a pergunta que há décadas tenta ser evitada: vamos finalmente enfrentar o problema agrário brasileiro ou continuar administrando sua violência como se fosse parte natural da paisagem?
Se o Brasil quiser paz no campo, terá de encarar as raízes do conflito.
Se os políticos do Mato Grosso do Sul quiserem dormir tranquilos, terão de decidir de que lado da história pretendem ficar.
ContrapontoMS
