Dourados chega aos seus 90 anos carregando uma virtude rara entre as cidades brasileiras: nasceu planejada para ser síntese. Criada como município em 1935, ganhou fôlego e identidade a partir de um gesto ousado do Estado brasileiro, na década de 1940, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND). Ali se lançava o embrião do que viria a ser chamada de Cidade Modelo, pensada não apenas como centro urbano, mas como projeto de país.
O traçado original do seu coração urbano não foi casual. As ruas receberam nomes de Estados da federação, formando um verdadeiro mapa simbólico do Brasil, onde cada avenida lembrava a origem de famílias que chegaram de longe para plantar raízes, trabalho, esperança. Dourados se afirmava, desde o início, como território de acolhimento, diversidade e encontro — um mosaico nacional cravado no Centro-Oeste.
Cada rua carregava — e ainda pode carregar — uma história viva. O gaúcho reconhecia sua saga na Rio Grande do Sul; o mineiro via sua marca na pecuária; paulistas e paranaenses se viam refletidos no comércio e na expansão agrícola; nordestinos, nas feiras e no sotaque; imigrantes japoneses, na disciplina que transformou hortas em referência. E, ao lado de todos, os povos indígenas e paraguaios, raiz mais profunda desta terra, completavam a colmeia humana que fez Dourados florescer.
Esse desenho urbano era mais do que estética. Era declaração de identidade. Dourados nascia para caber todo mundo.
O tempo, porém, não passa incólume pela memória. Ao longo das décadas, decisões políticas casuísticas foram apagando essa marca fundadora. Nomes de Estados deram lugar a homenagens imediatistas; monumentos foram deslocados de sua lógica simbólica; datas ligadas a períodos de exceção democrática passaram a ocupar o espaço público. O mapa simbólico do Brasil foi sendo, pouco a pouco, desfigurado.
É nesse contexto que surge o projeto “Recolocando os pingos nos is da História”, uma contribuição de quem aqui nasceu, andou de pés descalços pela Avenida Marcelino Pires sem asfalto e sem iluminação, que aqui vive e espera viver para ver este retorno, ops! O projeto já está nas mãos do prefeito Marçal Filho, o mais douradense e o mais orgulhoso dessa história que não será mais apenas a da terra de seu Marcelino. Paralelamente, segue pela Guaicurus em direção às salas de pesquisas da UFGD, onde receberá contribuição científica e histórica para depois ser apresentado à Comissão de Revisão Histórica que representa os pioneiros e, daí, finalmente encaminhado à Câmara Municipal, onde sempre aconteceu, sem o mínimo de critério, a lambança da troca de nomes de ruas e logradouros sem nenhum respeito à verdadeira história dos legítimos pioneiros. Não se trata de saudosismo, nem de disputa ideológica rasa. Trata-se de restituir sentido à cidade, reconciliar passado, presente e futuro.
O projeto propõe restaurar os nomes dos Estados brasileiros no quadrilátero central, com os ajustes necessários à criação de Mato Grosso do Sul e à mudança da capital federal para Brasília. Propõe realocar monumentos históricos em seus lugares de origem ou em pontos de maior relevância, suprimir logradouros que celebrem golpes e períodos de exceção, e estabelecer critérios técnicos, científicos e democráticos para futuras denominações — com participação das universidades e da sociedade.
Mais do que trocar placas, a proposta é educativa. Cada esquina volta a contar uma história. Cada monumento recolocado é um gesto de justiça simbólica. Cada nome arbitrário suprimido é um recado claro: a cidade não compactua com o apagamento da memória democrática.
O projeto também enfrenta uma velha chaga local: as disputas familiares em torno da ideia de “pioneiro”. Ao propor um Monumento ou Memorial coletivo aos Pioneiros, Dourados encerra vaidades particulares e reconhece que sua fundação foi obra de muitos, não de poucos.
Há, ainda, um resgate histórico fundamental. Foi sob Getúlio Vargas que o Estado brasileiro lançou um olhar estratégico sobre o Centro-Oeste, materializado na CAND (Colônia Agrícola Nacional de Dourados). Décadas depois, outro presidente gaúcho, Ernesto Geisel, consolidaria esse ciclo com o PRODEGRAN (Programa de Desenvolvimento da Grande Dourados), nos anos 1970, transformando miragem em realidade e fazendo da Grande Dourados um polo agrícola decisivo para o país. Onde havia apenas capim barba-de-bode, nasceu um tapete verde de produção e trabalho.
Nada disso apaga contradições, conflitos ou injustiças. Pelo contrário: recolocar os pingos nos is é reconhecer tudo isso, sem maquiagem. É admitir que desenvolvimento e exclusão caminharam lado a lado em muitos momentos. É reconhecer o papel central dos povos indígenas, frequentemente empurrados para as margens físicas e simbólicas da cidade que ajudaram a erguer.
Dourados não pode ser uma cidade sem memória. Sua lógica fundadora — reunir o Brasil inteiro em suas ruas — precisa ser respeitada. Cada placa devolvida é uma lembrança coletiva recuperada; cada monumento recolocado é um gesto de maturidade cívica; cada critério técnico instituído é uma aposta no futuro.
O Hino a Dourados, do poeta Armando da Silva Carmelo lembra que esta é a “jóia brilhante do Brasil”, “lindo oásis confiante no futuro”. Mas não há futuro sólido sem passado compreendido. Aos 90 anos, Dourados tem a oportunidade rara de fazer aquilo que poucas cidades ousam: olhar para trás sem medo, corrigir rumos e seguir adiante com dignidade.
Recolocar os pingos nos is da história não é voltar atrás. É, finalmente, seguir em frente do jeito certo.
