Foi encontrado morto em seu apartamento parisiense o brasileiro Carlos Vidal. Seu coração foi atingido pelas dez facadas que recebeu no tórax. Não resistiu. Tinha 45 anos e era sócio de uma empresa de renovação.
Fico chocada com a informação do jornal. Imagino que isso poderia acontecer comigo ou com qualquer outra pessoa. Identificação com um imigrante, tal como eu, que poderia acabar mal?
Coração apertado. Algo me incomoda. Fecho o jornal. Ainda com a taça de café nas mãos, levanto-me e vou até a janela.
O vento sopra leve, fazendo rolar algumas folhas secas pela calçada, criando um som musical neste final de outono, quase inverno. O céu está azul, pincelado de nuvens cinzentas de um lado. Do outro, nuvens brancas. Poucas. E a temperatura abaixando.
Crianças, com suas mochilas nas costas, acompanhadas dos pais, seguem para a direita, em direção à escola. Adultos caminham a passos largos em direção oposta, a caminho do metrô ou do ponto de ônibus. Logo mais estarão em seus locais de trabalho.
Sensação estranha. Alguém morto a facadas. Coisa da Idade Média!
Quando pequena, no interior — naquele mundo tão distante de tudo —, aconteciam coisas que me faziam lembrar cenas de faroeste vistas em filmes americanos. As mortes eram muitas, sobretudo de indígenas. Com revólver ou carabina. Naquele fim de mundo, não: a arma mais comum era a faca. Faca que podia ser encontrada em qualquer cozinha, mas também na cintura de alguns nordestinos que chegavam fugindo da seca e sonhando em trabalhar em terras boas onde tudo brotava. Terras suas.
Agora, aqui, alguém morto a facadas, em pleno século XXI, e em um país dito civilizado! Isso me atinge. Deixa-me com essa sensação estranha. Vou dar um tempo. Assim que ela passar, voltarei à leitura para saber mais.
- Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.
