A inauguração do Hospital Regional Olga Castoldi Parizotto, na margem da BR-463, não foi apenas um ato administrativo nem um marco sanitário. Foi, sobretudo, uma encenação perfeita do Brasil político contemporâneo, com suas contradições, acomodações e disputas silenciosas — tudo embalado por discursos sobre paz, pluralismo e felicidade.
Não é todo dia que um secretário executivo do Ministério da Saúde cita dom Helder Câmara, símbolo histórico da esquerda cristã e do humanismo radical, para falar de paz, enquanto na primeira fila da plateia está uma bolsonarista de carteirinha, Gianni Nogueira, mulher do deputado Rodolfo Nogueira, o “Gordinho” do Bolsonaro, vice-prefeita de Dourados e pré-candidata ao Senado. A cena, por si só, já dispensaria legenda.
No mesmo palco, o governador Eduardo Riedel se viu obrigado a fazer o malabarismo político que se tornou marca registrada de gestores estaduais em tempos de polarização: agradar o presidente Lula sem romper totalmente com o eleitorado bolsonarista que ainda lhe serve de base. Não é tarefa simples — e tampouco confortável. Mas foi executada com o cuidado de quem sabe que 2026 está logo ali, dobrando a esquina.
Quem melhor leu o ambiente, no entanto, foi o prefeito Marçal Filho. Aproveitando a deixa, tratou de enquadrar o momento como símbolo de pluralismo político, chamando 2025 de “o ano mais difícil” tanto para sua administração quanto para o governo estadual. Não foi um desabafo gratuito. Foi um recado: governar em meio a forças tão divergentes exige mais do que ideologia — exige pragmatismo, negociação e estômago.
Marçal também fez o que políticos experientes fazem em inaugurações desse porte: cobrou mais. Reforçou publicamente a necessidade de novos investimentos em urgência e emergência, citando nominalmente o governador Eduardo Riedel e o secretário estadual Maurício Simões. Cobrança direta, em público, registrada em ata política. Nada ali foi improviso.
Ao lembrar que foi ele quem, ainda deputado federal em 2014, destinou a emenda que deu início às obras do hospital, Marçal tratou de amarra passado, presente e futuro. Reivindicou paternidade sem excluir a classe política, reforçando a narrativa de que grandes obras só saem do papel quando há convergência — mesmo entre adversários.
Esse discurso ganhou corpo quando o prefeito afirmou, sem rodeios, que “seu partido agora é Dourados”. A frase não é nova, mas no contexto atual funciona como senha eleitoral. Marçal se posiciona como gestor municipalista, disposto a aceitar ajuda de qualquer campo ideológico, desde que a cidade ganhe. É uma estratégia clara para atravessar um cenário nacional contaminado pela polarização.

E então veio o momento quase surreal: o presidente da Associação Comercial e Industrial de Dourados, Everaldo Leite, subiu ao palco com um bolo da sua conhecida “padaria do fuxico”, tentando roubar a cena no dia em que a cidade celebra 90 anos de emancipação. O gesto, embora festivo, expôs um velho vício local: a dificuldade de distinguir protagonismo institucional de vaidade pessoal. Nem toda solenidade precisa de cobertura de chantilly.
No meio de tudo isso, o hospital — que deveria ser o protagonista absoluto — acabou funcionando como pano de fundo simbólico. São 100 leitos inaugurados, com previsão de chegar a 192 no próximo ano, UTI adulto e pediátrica, centro cirúrgico robusto e impacto regional estimado em quase 1 milhão de pessoas. Um ganho real, concreto, inquestionável.
Mas é preciso dizer com clareza: o Hospital Regional não atende livre demanda. A urgência e emergência continuam sob responsabilidade do Hospital da Vida e da UPA. A regulação é estadual. Esse detalhe técnico, muitas vezes ignorado em discursos festivos, será decisivo quando a população começar a cobrar resultados imediatos.
Ao final, o parabéns cantado, o bolo compartilhado e o plantio simbólico de uma oliveira selaram o ritual: paz, legado e compromisso com o futuro. Tudo muito bonito. Tudo muito simbólico. Tudo muito político.
A inauguração do Hospital Regional de Dourados mostrou que, em Mato Grosso do Sul, a saúde também é território de disputa narrativa. Cada fala ali, exceto a do deputado Geraldo Resende, foi menos sobre bisturi e mais sobre projeto de poder. Cada gesto foi um recado cifrado para aliados, adversários e eleitores.
Se o hospital vai cumprir sua missão, o tempo dirá — e a regulação também. Já quanto ao palco, este cumpriu seu papel com eficiência imediata. As ambições ficaram explícitas não apenas nos discursos oficiais, mas sobretudo nas famigeradas lives paralelas, como as da vereadora Isa Cavala Marcondes, dizendo que o hospital não resolve os problemas de Dourados, que só não ingressou em juízo para tomar da presidente da Câmara, Liadra da Saúde, o cognome que o senso comum já distribuiu por conta própria. Nada disso é casual.
Também não foi aleatório o gesto do presidente da Assembleia Legislativa, Gerson Claro, uma espécie de desagravo, ao ceder seu tempo de fala à colega Lia Nogueira, igualmente em campanha pela reeleição, empunhando o mesmo discurso — ainda que temperado com a distribuição de cachorro-quente aos trabalhadores da saúde. Como se vê, o bisturi ficou em segundo plano. A disputa mesmo foi pelo enquadramento, pelo nome, pelo gesto e, sobretudo, pela narrativa.
