Aos 48 anos, a médica Ludhmila Hajjar traçou um caminho emblemático na medicina do país. Em um meio conhecido por ser ainda bastante conservador, conquistou cargos de liderança, como o de professora titular de Emergências da Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo (USP) e da coordenação da cardiologia, terapia intensiva e medicina de emergências do Hospital Vila Nova Star, da Rede D´Or.
Com 300 estudos e 12 livros científicos publicados, Hajjar participa ativamente de questões políticas em defesa da saúde pública. Neste ano, entre elas, a criação do primeiro ‘hospital inteligente’, um complexo com 800 leitos pelo SUS, que envolveu governos diversos e aporte internacional. Nesta entrevista a cardiologista e intensivista faz uma retrospectiva dos grandes acontecimentos na sua área em 2025, fala como essa época do ano é delicada para a saúde do coração e elenca os principais hábitos de vida para uma vida mais longa e com saúde.
Neste ano aconteceram duas mudanças importantes na sua especialidade, as metas de controle do colesterol e da pressão arterial ficaram mais rigorosas. Qual é o real impacto dessas alterações nos cuidados do coração?
As doenças cardiovasculares, especialmente o infarto agudo do miocárdio e o derrame cerebral, são as principais causas de morte no nosso país. Cerca de 400 mil pessoas morrem de infarto todos os anos, só para você ter uma ideia. A metade poderia ser evitada pelo controle de fatores de risco. E entre os fatores de risco mais comuns estão justamente o LDL, o chamado colesterol ruim, e a pressão alta. Então é algo que deve ser levado muito a sério, com muito rigor. Quanto mais controladas essas taxas, menor é o risco de morte. O LDL, há alguns anos, era aceito como adequado até 190. Esse parâmetro caiu para 160. Hoje, para a população geral o recomendado é não ultrapassar a meta de 115. E bem recentemente, no congresso do American Heart Association, de novembro, o maior de cardiologia do mundo, confirmou-se que na população de alto risco, que já operou o coração, já tem stent ou já teve um infarto, o LDL tem que ser menor que 40. Em relação à pressão, a evolução tem sido ligeira também. Passamos um tempo aceitando que pressão alta era acima de 15 por 10. E hoje, o paciente que tem 12 por 8 já é pré-hipertenso. As mudanças só ocorreram porque hoje conhecemos o corpo humano com muito mais profundidade graças ao aprimoramento das ferramentas médicas. Isso tem um impacto enorme. Índices mais rigorosos alertam mais precocemente para o risco da doença se estabelecer, acendem um farol amarelo para a pessoa começar a se cuidar e a mudar os hábitos de vida.
Qual hábito de vida influencia mais a saúde do coração, a dieta ou a atividade física?
O ideal é manter hábitos de vida saudáveis de forma integrada. O maior benefício vem do conjunto de fatores bem controlados. No entanto, se fosse necessário escolher, há mais comprovação científica do benefício da atividade física na redução de doenças cardiovasculares, na prevenção de diversos tipos de câncer e na manutenção da saúde osteomuscular. Para o exercício físico, dispomos de um volume robusto de evidências e estudos bem conduzidos. A dieta também apresenta evidências consistentes, embora em menor quantidade e, muitas vezes, com maior heterogeneidade metodológica. Bom é a combinação de exercícios associando os aeróbicos e de força, totalizando ao menos 150 minutos por semana. Em relação à alimentação, a dieta com maior evidência na prevenção de doenças cardiovasculares é a mediterrânea, baseada em grãos integrais, legumes, frutas, azeite de oliva extravirgem, peixes, com menor consumo de carboidratos refinados e alimentos ultraprocessados. Em resumo: o coração agradece quando movimento e prato caminham juntos, mas, se tiver que desempatar, o exercício físico cruza a linha de chegada primeiro.
O consumo de álcool tem sido cada vez menos tolerado por profissionais de saúde. Qual é a sua opinião sobre isso?
Defendo tolerância zero com álcool. O álcool não traz qualquer benefício, pelo contrário, coloca a vida das pessoas em risco. E não me refiro só às doenças cardiovasculares, mas às neoplasias também. O álcool tem relação com a maior parte dos cânceres: pâncreas, intestino, boca, cabeça e pescoço etc. Esse conhecimento é recente. Não há muito tempo que se sabe que os malefícios do álcool se sobrepõem ao do resveratrol, composto da uva que é antioxidante. E agora, no fim do ano, a pressão para o consumo é mais alta, com inúmeras festas. Nessa época cresce o número de internações por problemas cardíacos e acidentes que causam traumas. Uma série de estudos epidemiológicos mostram isso. Entre os fatores envolvidos estão estresse, aumento da pressão no trabalho e as próprias festas comemorativas com consumo exagerado de álcool.
Você lidera uma equipe grande de médicos e cientistas. Esse ambiente ainda é machista?
Melhorou, hoje somos em um número maior e há mais mulheres na medicina, no meio acadêmico. Mesmo assim, o número de homens em cargos de liderança é muito maior. Vou dar o exemplo do que acontece na Faculdade de Medicina, em São Paulo. Somos em 69 professores titulares, 15 são mulheres. Já foi menos, mas ainda é pouco. Ao longo dos anos ganhei a fama de brava, de difícil, mas talvez se tivesse agido de outra forma não teria sido ouvida. Isso não acontece com os homens.
Há poucos dias o Senado aprovou por unanimidade a implementação do primeiro ‘hospital inteligente’ do Brasil, um projeto liderado por você. Como funciona uma instituição desse tipo?
Ele é 100% desenhado para otimizar os tempos, como diminuir as filas e o prazo entre o diagnóstico e uma intervenção terapêutica. Alimentado por inovação, inteligência artificial e integração de dados, é todo conectado, o que favorece muito a evolução do paciente e o tratamento. A revolução tecnológica que estamos vivendo hoje já permite isso, basta implementar. Vi alguns bons exemplos pessoalmente na China, como em Xangai e Pequim. O paciente é conectado por meio de um smartphone a um hospital, que já tem um pré-registro dele. No instante do problema acontecer, o hospital consegue definir qual profissional irá atendê-lo e o tempo que vai esperar. Internamente, todos os setores são integrados, os profissionais têm acesso a tudo em acervos de informação absolutamente seguros. Vi hospitais com 4 mil leitos sem nenhuma fila de espera. Isso não é luxo, é tempo a mais de vida. No Brasil será ele será o primeiro, em São Paulo, ligado ao complexo do Hospital das Clínicas. E me orgulho em dizer que será pelo SUS. Terá 800 leitos, 300 de UTI. Será construído graças a uma força-tarefa do Banco do Brics, governo federal e estadual. A ideia é que seja inaugurado até 2028. Meu sonho é fazer disso um piloto e ampliar a ideia para outros estados.
Recentemente, você se posicionou publicamente contra o projeto de lei em análise no Senado que torna obrigatório os novos médicos fazerem uma prova ao se formaram. Por que você não apoia?
Avaliar o aluno depois do curso concluído não resolve a má formação de médicos no Brasil. Se isso for adiante, além de não resolver o problema, resultará numa indústria de cursinho. O problema é mais profundo. Nasce da proliferação indiscriminada de faculdades de medicina que formam profissionais sem capacitação. Estamos vendo um número cada vez maior de médicos trabalhando em emergências, em UTIs, em hospitais em geral, sem especializações, sem residência, sem título de especialista. Defendo critérios baseados concretos para a abertura e manutenção de instituições de ensino. Tem hospital escola? Tem professor? Qual a porcentagem de doutores? Sou coordenadora da atual mudança do currículo médico que torna obrigatória a partir de 2026 uma prova no quarto ano, ou seja, antes de ele entrar na fase mais prática do curso. E a depender das taxas de reprovação, temos que fechar faculdades.
Você tem um discurso político forte, já pensou em se candidatar para algum cargo?
Eu quero é ser presidente de hospital público para melhorar a saúde deste país.
Adriana Dias Lopes/O Globo — São Paulo
