“Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima…”
Da sacada de meu prédio dá pra ver quando eles se sentam pra descansar como se fosse sábado, comendo feijão com arroz como se fossem uns príncipes, bebendo e soluçando como se fossem uns náufragos e dançando e gargalhando como se ouvissem música. Também dá pra ouvir o que conversam, comentando as mazelas da terra de seu Marcelino narradas diariamente por Oswaldinho Duarte (uma exceção da excelência radiofônica tão almejada por de Antônio Tonanni). São operários (tal qual os da Construção de Chico Buarque) da construção de uma clínica que está sendo erguida na esquina da rua que leva o nome do primeiro prefeito de Dourados (João Vicente Ferreira) com a que homenageia o príncipe dos jornalistas brasileiros (Quintino Bocaiúva). Como homenagem também, a que moro.
Não. Eles não estão falando mal da administração do prefeito Alan Guedes, do governador Eduardo Riedel ou do presidente Lula. Assim como o escrevinhador interiorano que curte as poesias e poemas de Chico Buarque de Holanda, do português Fernando Pessoa e da brasileira nascida da Ucrânia Clarice Lispector – esses sim, dignos dos fardões dos imortais – os operários meus vizinhos temporários estão comentando sobre Javier Milei. Algum novo poeta da cidade em que isso se vulgarizou? Não, eles estão, a exemplo de sua excelência o presidente Luiz Ignácio da Silva, muitíssimo preocupados com o que pode acontecer com o sulamérica, como diria José Alberto Vasconcelos (o Juca Paulista, um dos mais ilustres entre os imorríveis douradenses), com a posse do direitista despenteado e espalhafatoso novo presidente Argentino.
Tirante o penteado, já que Fernando Collor de Mello era da geração brilhantina, pelo que consegui ouvir, a preocupação dos operários da construção douradense era com a semelhança entre Milei e Collor, eleito com a promessa de incansável caça aos marajás brasileiros, mas tendo o mandato cassado dois anos depois, por corrupção, sobretudo porque resolveu peitar o Congresso Nacional.
Lá pelas tantas um dos operários se lembrou da história do “saco roxo” com o qual Fernando Collor ameaçou a elite brasileira da política e do empresariado. Foi quando ouviram, pelas ondas do rádio, Milei falando em acabar com a “rola”, o que foi entendido como o fim de alguma pornografia política na terra do tango, quando, de verdade, o novo presidente estava se referindo ao fim da ola, pronunciado como “rola”, em espanhol – a onda de corrupção e desmandos na terra dos hermanos do Sul.
Corri para acompanhar no streaming a fala de Milei captada pelas ondas do rádio na construção lá embaixo. Pela verborragia o argentino Javier Milei se parecendo tanto com Fernando Collor quanto com seu aliado brasileiro Jair Bolsonaro. “É uma loucura, um delírio arrogar-se que um representante do povo vale mais que o próprio povo. É um delírio da casta política. Então no nosso governo os políticos terão que viver a mesma vida que vive o cidadão comum” disse.
Quando falava em corrupção, os recados pareciam direcionados a Lula, a quem Javier Milei criticou bastante durante sua campanha eleitoral. Mas para Bolsonaro, sobrando as indiretas na questão do nariz empinado, no que o aliado brasileiro do argentino também lembra Collor de Melo. Milei disse que só foi eleito porque seus compatriotas descobriram que não querem ser cordeiros, que é melhor sendo leões. “Eles vão comer crus os políticos ladrões, vão devorar empresários prevaricadores, vão devorar os sindicalistas que entregam o povo, vão devorar crus os meios de comunicações que foram funcionais a todo esse esquema, e vão se embora os convenientes com toda essa sujeira”, esbraveja o argentino.
Um assentador de gesso quase desaba do primeiro piso da construção quando ouve Milei dizer que, por sua condição de outsider, mas que lutou muito para chegar aonde chegou, vai tirar seus adversários do poder com um pontapé no traseiro. Seria só por isso ou, voltando à obra prima de Chico Buarque, pela cachaça de graça que tem que engolir, pela fumaça, desgraça, que tem que tossir ou pelos andaimes pingentes que tem que cair? Que a Argentina não tenha, também, seu oito de janeiro!
