O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) está usando parte de seu tempo em Angra dos Reis (RJ) para repetir uma prática que ficou conhecida em seu mandato como “cercadinho do Alvorada”.
Agora, nas suas próprias palavras, ele instituiu o “cercadinho de Mambucaba”, que se resume a receber apoiadores em sua casa de praia, na pequena Vila Histórica de Mambucaba, para falar de assuntos os mais variados possíveis.
Temas que, conforme um repórter da Folha de S. Paulo acompanhou neste sábado (3), incluem nióbio, Lula, Venezuela, pedágios e como ele poderia ter ficado rico na Presidência se beneficiando de informações privilegiadas do Banco Central —entre outras preleções. Ao final, todos entram em uma fila para tirar fotos com o ex-presidente.
Mambucaba tem cerca de mil habitantes e fica quase na divisa com Paraty, distante cerca de 50 km do centro de Angra. No sábado, nenhum dos filhos de Bolsonaro estava presente, nem a mulher, Michelle —que não gosta de ir para lá, segundo ele.
É na pequena vila que ele abrigou por 15 anos uma funcionária fantasma dele da Câmara dos Deputados que, na verdade, era mulher de seu caseiro e tinha como principal atividade na cidade a venda de açaí.
Após o repórter se identificar ao final do café da manhã (a identificação à segurança de Bolsonaro foi feita na entrada), o ex-presidente respondeu a perguntas sobre por que está há cerca de um mês de descanso na cidade. Ele disse previamente que não responderia a perguntas sobre política ou outro assunto.
Ao lado de dois pés de jabuticaba (as únicas árvores da casa) e de um dos jet-skis que usou na pescaria com os filhos no dia em que a Polícia Federal fez buscas na casa atrás de pertences de Carlos Bolsonaro, investigado no caso da “Abin paralela”, o ex-presidente disse que sua agenda na cidade é pescar e jogar conversa fora.
As portas da casa de praia do ex-presidente (há duas saídas, uma virada para a praia e outra virada para a principal rua do vilarejo) têm se aberto normalmente entre 7h e 8h, ocasião em que algumas dezenas de apoiadores e turistas são colocados para dentro, se amontoando em torno de uma grande mesa retangular de madeira.
Algumas batidas no portão (não há campainha nem na frente nem atrás do imóvel) levaram um segurança com crachá da Polícia Federal a abrir, reunir o grupo e passar as instruções para entrada: entre outras, não estar armado, não fazer vídeos sem autorização do presidente e não fazer perguntas políticas.
A essa altura da conversa, Bolsonaro falava sobre o agro —dizia desconhecer o que é o “agro fascista”, expressão já usada por Lula — e, logo depois, emendou vários minutos de uma preleção sobre nióbio, uma de suas fixações.
Ao seu lado, além de assessores, estavam policiais que fazem sua segurança (todo ex-presidente tem direito) e o deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ), um de seus principais aliados.
Naquela manhã de sábado não haveria o “cercadinho de Mambucaba”, já que o ex-presidente pretendia, segundo disse, passar o dia pescando. Um dos motores da lancha pifou, entretanto, e ele resolveu voltar para a casa.
A exemplo do “cercadinho do Alvorada” —que ocorria quase toda manhã em frente à residência oficial da Presidência, e em que diversas ocasiões houve ameaças de apoiadores a profissionais de imprensa—, no de Mambucaba Bolsonaro tem a primazia da palavra.
Ele chegou a perguntar a pessoas que estavam conversando durante sua fala se elas não preferiam papear fora da sua propriedade. Isso garantiu silêncio quase total durante a conversa.
Após falar do agro e longamente do nióbio e do grafeno (“tem mais utilidade do que o Bombril”), Bolsonaro fez algumas críticas à Venezuela, a Gilberto Kassab (presidente do PSD, que teria colocado seus parlamentares para votar contra ele na CPI de 8 de janeiro por medo de perder os ministérios no governo) e, então, falou, sem ser questionado, sobre chances que teve de ficar rico na vida pública.
“Chance de ficar rico como deputado já tive, como presidente nem se fala”, afirmou. E citou como exemplo o Banco Central.
“Uma informação privilegiada. Vamos supor que o BC vai comprar ou vender depois de amanhã US$ 500 milhões para mexer no preço do dólar. Eu poderia ligar para o Banco Central, os caras falam comigo, pego meus amigos aqui e eles compram ou vendem US$ 200 milhões, botam US$ 20 milhões no bolso. Isso é o Brasil. […] E o risco é zero de pegar, zero.”
Como a mostrou em 2018, o patrimônio da família Bolsonaro se multiplicou na política, reunindo àquela época 13 imóveis com preço de mercado de pelo menos R$ 15 milhões, a maioria em pontos altamente valorizados do Rio de Janeiro, como Copacabana, Barra da Tijuca e Urca.
Bolsonaro prosseguiu na fala aos apoiadores dizendo ainda que sua chegada ao Palácio do Planalto representou um ganho na Mega da Virada, só que ao contrário.
“Quem sou eu para ser presidente, meu Deus do céu? Eu era um deputado encrenqueiro.”
Com pouquíssimas intervenções dos apoiadores, resumidas a concordar com o que ele dizia, Bolsonaro pediu a eles que citassem uma boa medida do governo Lula.
Ele próprio respondeu, afirmando o contrário, o que ele aponta como defeitos. “Ah, ‘eu fiz 90% da transposição do rio São Francisco’. Não adianta fazer e deixar dez anos parada, quebra tudo, tem que fazer tudo de novo”.
Já quase no final, Bolsonaro falou sobre um tema levantado por uma apoiadora, a participação das mulheres na política.
“Não tem que votar em mulher porque é mulher, em homem porque é homem, em negão porque é negão… Cadê o Hélio?”, perguntou, para risos dos apoiadores. Depois ressaltou o fato de Michelle Bolsonaro ter andado pelo país em busca de estimular a entrada das mulheres na política, mas completou: “Não entrar por cota, mas por vontade”.
Bolsonaro ainda teve tempo para falar do pequeno comércio logo em frente à sua casa, o Pepeu Lanches, cujo slogan que o ex-presidente espalha —e que é repetido tranquilamente pelo próprio Pepeu— é “Pepeu: comeu, morreu”.
Após um assessor pedir aos apoiadores para fazerem a última pergunta, alguém emendou que Bolsonaro teria uma “agenda”. Ele corrigiu a informação, porém. “Agenda eu não tenho, mas vou inventar uma.”
Ranier Bragon/Folha de S. Paulo