Em 1822, quando o Brasil estava à beira da separação de Portugal, diferentes projetos políticos para a nova nação entraram em disputa. Um dos projetos previa que a antiga Colônia portuguesa pouco mudaria: a nova nação seria monárquica, o território ficaria intacto, a escravidão permaneceria como a base da economia e o poder não seria repartido entre as províncias, mas concentrado nas mãos do governo central, no Rio de Janeiro.
Os brasileiros conhecem bem a história. No fim das contas, foi justamente esse o projeto político vencedor, idealizado pela elite do eixo Rio-Minas-São Paulo e executado pelo imperador D. Pedro I a partir do grito do Ipiranga.
O que os brasileiros não conhecem são os projetos perdedores, aqueles “Brasis alternativos” que, apesar de possíveis, o curso da história não permitiu que se tornassem realidade.
Tais projetos podem ser pelo menos vislumbrados quando se olham as outras histórias do continente. A Colômbia, a Argentina e outros vizinhos se fragmentaram em diferentes repúblicas. O Haiti foi palco de uma rebelião negra que massacrou os brancos, declarou o país independente e aboliu a escravidão. Cuba se manteve escravista e unida à Espanha. Os Estados Unidos entregaram o poder de mando aos estados, não ao governo nacional.
A verdade é que houve, sim, um “Brasil alternativo” que conseguiu sair do papel. Foi a Confederação do Equador, que costuma aparecer nos livros didáticos de história como um episódio menor dentro do Primeiro Reinado (1822-1831).
Precisamente 200 anos atrás, um grupo de revoltosos declarou Pernambuco um país com governo próprio, aberto à entrada de qualquer outra província que também estivesse insatisfeita com a política centralizadora e autoritária de D. Pedro I. Esse “Brasil alternativo” era republicano, tinha o poder descentralizado e considerava acabar com a escravidão.
A Confederação do Equador foi proclamada em 2 de julho de 1824 e ainda contou com a adesão da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. A nova nação, contudo, teve vida curta. Não chegou a completar cinco meses de existência. Pela força das armas, D. Pedro I sufocou os últimos rebeldes em novembro.
No fim do ano passado, o Senado criou uma comissão para resgatar a história da Confederação do Equador e também planejar e coordenar as comemorações do seu 200º aniversário.
A comissão, formada por cinco parlamentares da Região Nordeste, foi criada a pedido da senadora Teresa Leitão (PT-PE), que também preside o colegiado. Os trabalhos se estenderão até o início do próximo ano.
Inicialmente, Pernambuco se somou ao projeto independentista de D. Pedro I. A província acreditou na promessa de que, primeiro, o Brasil teria uma Constituição liberal e moderna redigida pelos representantes das províncias, em nada semelhante ao absolutismo monárquico da velha Europa, e, segundo, as províncias da nova nação desfrutariam de generosas doses de autonomia política e econômica.
Uma vez coroado imperador, no entanto, D. Pedro I deixou a dupla promessa para trás. Em outubro de 1823, mudou a lei que regia a escolha dos presidentes das províncias. Antes selecionados pelas próprias províncias, eles passaram a ser indicados diretamente pelo imperador, e o monarca apontou um nome que os pernambucanos não aceitaram.
No mês seguinte, ao perceber que a Constituição que estava sendo elaborada pelos deputados não lhe daria todos os poderes que queria, D. Pedro I mandou, num ato de despotismo, fechar a Assembleia Constituinte. O episódio ficou conhecido como Noite da Agonia. Coube a um grupo de assessores de sua confiança redigir a primeira Constituição brasileira, outorgada em março de 1824.
Embora a Constituição não chegasse a ser absolutista, os pernambucanos a consideraram pouco liberal, já que colocava o monarca numa posição politicamente superior à do Parlamento, que era a representação das províncias e do povo.
O imperador passou a ter em suas mãos tanto o Poder Executivo quanto o Poder Moderador, o que enterrou a possibilidade de haver equilíbrio entre os Poderes do Império.
Os pernambucanos entenderam que não poderiam esperar mais nada de D. Pedro I. Assim, o presidente (governador) da província de Pernambuco, Manoel de Carvalho, declarou criada a Confederação do Equador, que planejava redigir em breve a sua própria Constituição — esta, sim, 100% liberal.
Entre outros pontos, esperava-se que a lei máxima da nova república estabelecesse que o poder seria compartilhado irmãmente entre todas as províncias, sem que a União estivesse acima delas, funcionando mais ou menos como os Estados Unidos. Essa era a essência de uma confederação ou federação — na época, os dois termos eram utilizados indistintamente.
O historiador André Heráclio do Rêgo, do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, afirma:
— A Confederação do Equador foi a primeira revolução constitucionalista do Brasil, mais de cem anos antes da célebre Revolução Constitucionalista de 1932, contra Getúlio Vargas, em São Paulo. Foi também a primeira revolução federalista do Brasil. Com efeito, foram esses os seus aspectos principais, mais do que qualquer veleidade separatista.
O historiador George Cabral, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembra que muitos livros didáticos insistem ainda hoje em apontar o separatismo como característica definidora da Confederação do Equador:
— Como a história foi escrita pelos vencedores, a Monarquia rotulou o movimento como separatista, dando a entender que era subversivo e ameaçava a existência do Brasil. Também o rotulou como secundário, regionalista, egoisticamente preocupado com a defesa das prerrogativas locais. O projeto da Confederação do Equador, porém, era para o Brasil todo. Embora não corresponda plenamente à realidade, a narrativa oficial da formação do Estado nacional, forjada pela Monarquia, ignorou os projetos alternativos e se tornou hegemônica.
Na avaliação de Cabral, até mesmo a escolha de Tiradentes como herói republicano, decidida logo após a derrubada da Monarquia, não foi adequada:
— Com todo respeito à história de Minas Gerais, é preciso lembrar que o projeto republicano da Inconfidência Mineira ficou na fase do planejamento. Foi denunciado, descoberto e sufocado antes de ser tirado do papel. Em Pernambuco foi diferente. Tanto na Revolução Pernambucana, de 1817, quanto na Confederação do Equador, de 1824, os insurgentes efetivamente estabeleceram um governo republicano.
Para o historiador André Heráclio do Rêgo, o Frei Caneca, mentor intelectual da Confederação do Equador, seria um herói republicano mais apropriado do que Tiradentes. Ele continua:
— A glorificação de Tiradentes e da Inconfidência se deu na Primeira República [1889-1930], período em que houve uma nítida predominância política de Minas Gerais e São Paulo. É o mesmo motivo por que os bandeirantes paulistas foram também glorificados.
Naquele “Brasil alternativo” criado pelos pernambucanos, a escravidão negra provavelmente seria eliminada em breve. Isso se depreende de dois fatos.
Primeiro, os principais líderes da Confederação do Equador eram, pessoalmente, contrários à existência de mão de obra escravizada. Depois, uma das primeiras medidas do governo republicano foi abolir o tráfico negreiro da África para os portos das províncias confederadas.
Segundo o professor George Cabral, da UFPE, o fim da escravidão não tinha na zona rural o mesmo apoio que tinha nas cidades e esse desequilíbrio foi fatal para os confederados:
— Os senhores de engenho do Nordeste dependiam dos escravizados no cultivo da cana e na produção do açúcar. Um dos motivos para a Confederação do Equador não ter vingado foi justamente não ter contado com a adesão desse poderoso grupo agrário, que preferia o governo de D. Pedro I.
Ele continua:
— A relação entre a Monarquia e a escravidão era tão íntima que, assim que a escravidão foi abolida, em 1888, a Monarquia perdeu a razão de existir e foi derrubada no ano seguinte.
O nome Equador era uma referência às províncias da porção norte do Império, localizadas perto da Linha do Equador, em oposição às províncias do sul, aglutinadas sob o comando centralizador do Rio de Janeiro.
A Confederação do Equador é anterior ao surgimento do atual Equador, país criado no outro lado da América do Sul em 1830. Alguns pesquisadores creem que, para batizar o seu país, os equatorianos se inspiraram no nome da nação criada anteriormente pelos pernambucanos. Antes da independência, o Equador era o departamento de Guayaquil.
A hipótese é plausível. O general Abreu e Lima, que deixou Pernambuco em 1819 e participou da libertação de diferentes territórios espanhóis na América, incluindo o futuro Equador, estava a par dos acontecimentos revolucionários em sua província natal.
O professor da UFPE afirma que é importante que os brasileiros conheçam a Confederação do Equador porque existem questões levantadas há 200 anos pelos revolucionários que de tempos em tempos reaparecem no debate nacional, como o indesejado desequilíbrio entre os Poderes:
— Nos últimos anos, vimos o Poder Executivo lançar ofensivas contra o Poder Judiciário, procurando deslegitimá-lo. Ainda mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal teve que se manifestar sobre a falsa interpretação de que as Forças Armadas seriam hoje o Poder Moderador e estariam acima dos outros três Poderes da República.
O historiador e consultor legislativo Dario Alberto de Andrade, que trabalha na comissão do Senado que trata do bicentenário, cita outro ponto da pauta de 1824 que permanece atual:
— O pacto federativo ainda não está resolvido. Basta olharmos a reforma tributária de agora. Os estados não aceitaram que o governo federal criasse um imposto único e pressionaram para a instituição de dois impostos: um federal e outro local, sob a administração dos estados e municípios. Existe uma tensão permanente entre o poder central e a autonomia local tanto nas questões políticas quanto nas questões financeiras. Sem entendê-la, não há como compreender a história do Brasil.
Essa tensão entre o poder central (antes no Rio, agora em Brasília) e a autonomia local (antes das províncias, agora dos estados) foi a causa de rupturas ao longo da história do Brasil. Em certos momentos, o país pendeu para a centralização do poder. Em outros, para a descentralização.
O vaivém é bem claro. No reinado de D. Pedro I, o poder no Brasil esteve centralizado. Isso incompatibilizou o imperador com as elites provinciais, que desejavam mais força. Elas alcançaram esse objetivo na Regência, período de ampla descentralização política. A centralização voltou após a coroação de D. Pedro II.
Na Primeira República, as unidades subnacionais gozaram de níveis recordes de autonomia política e tributária. O nome oficial do país era Estados Unidos do Brasil.
Na Era Vargas, o novo presidente marcou a volta da centralização com um ato simbólico: queimou em público todas as bandeiras estaduais e mostrou que a única que deveria ter autoridade era a nacional.
— Quando conhecemos a história da Confederação do Equador, vemos que os atores históricos têm uma vastidão de caminhos a escolher. Alguns são escolhidos e outros, rejeitados. A história não é predefinida, inevitável ou natural. Precisamos entender que, da mesma foram que os atores do passado, nós, do presente, também fazemos escolhas e traçamos a nossa história — analisa o consultor Dario de Andrade.
Na avaliação do consultor legislativo Vinícius Machado Calixto, que também atua na comissão dos 200 anos, é natural que o Senado esteja comprometido com o resgate histórico da Confederação do Equador:
— Como os senadores representam as unidades da Federação, o Senado tem especial preocupação com o equilíbrio na relação dos estados entre si e dos estados com a União.
A comissão presidida pela senadora Teresa Leitão (PT-PE) tem feito audiências públicas em Brasília com historiadores e visitado os estados que guardam o legado da Confederação do Equador.
As comemorações do bicentenário incluirão eventos em parceria com órgãos públicos, associações históricas e universidades, a publicação de livros sobre o movimento e a produção de um documentário.
O destino dos líderes da derrotada Confederação do Equador comprova que, para o imperador D. Pedro I, nenhum “Brasil alternativo” jamais seria tolerado.
Manoel de Carvalho foi exilado. Cipriano Barata, mandado para a prisão. O Padre Mororó e o Frei Caneca, executados por fuzilamento.
O território de Pernambuco não passou incólume. D. Pedro I tomou 65% da província — a faixa que acompanha o Rio São Francisco e atualmente corresponde a todo o oeste da Bahia. Mutilado, Pernambuco deixou de fazer divisa com Minas Gerais, Goiás e o atual Tocantins.
Ricardo Westin/Fonte: Agência Senado