Quando o Airbus da Latam pousar em Dourados na manhã desta segunda-feira, seu co-piloto Juliano Santiago Martins Ferreira estará virando uma das mais vergonhosas páginas da recente história da terra de seu Marcelino — terra que é também de Juliano Santiago e onde, por isso, certamente receberá do comandante do voo a honrosa missão de colocar o avião no solo. E que responsabilidade a desse douradense de família humilde, pois além de trazer a bordo o próprio pai, Miguel Angel Montiel Ferreira (também douradense, hoje promotor de Justiça no Amapá), para presenciar seu feito histórico, terá entre os ilustres passageiros deste voo inaugural o prefeito Marçal Filho e toda a sua entourage.
Menos mal que Marçal não corre o risco de passar por uma carraspana como aconteceu com seu padrinho político José Elias Moreira, também ao descer de outro voo inaugural, quando a companhia ainda era apenas a TAM, nos idos de 1977. Naquele tempo, o dono da empresa, comandante Rolim Amaro, pilotou o Bandeirante até Dourados e, ao ver o estado da “estação de passageiros”, fez um discurso que deixou Zé Elias sem ter onde enfiar a cara. Chamou aquilo de “tapera” e disse que, se soubesse das condições, não teria incluído a cidade na rota de seus aviões. Nesta segunda-feira, talvez caiba ao vice-governador Barbosinha, que fará as vezes de anfitrião, dar as explicações quanto às condições do “terminal” atual — já que a obra do novo receptivo está a cargo do governo estadual. Diferente de Zé Elias, Barbosinha poderá apenas admitir: “é o que temos para o momento”, mas exibindo a maquete do futuro terminal que, de tanto ser mostrada, já virou peça de propaganda requentada.
Mas convém lembrar que aquela de 1977 não foi a primeira “inauguração” de voos em Dourados, como aconteceria com os voos da Gol, já neste século. Bem antes disso, ainda na década de 1950, a cidade já recebia aeronaves das companhias Real e Cruzeiro do Sul, operando os antológicos DC-3. Tempos em que o “campo de aviação” era uma pista de terra na Cabeceira Alegre. Era o tempo em que voar tinha ares de cerimônia: os cavalheiros a bordo vestiam ternos de linho bem cortados, e as madames surgiam em tailleurs impecáveis, luvas e chapéus discretos, como se cada decolagem fosse um acontecimento social.
Mas tudo isso é perfumaria diante do que Dourados perdeu nesses anos em que os voos foram interrompidos para que o glorioso Exército Brasileiro executasse a obra de reforma e ampliação da pista. O que foi vendido como solução exemplar, barata e segura transformou-se em um vexame: em vez de construir uma pista nova e manter a antiga em funcionamento, o Exército simplesmente interditou tudo. Resultado: mais de quatro anos sem voos comerciais para a segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul e sede de uma região de quase um milhão de habitantes.
De lá para cá, quem precisava viajar foi obrigado a uma via-crúcis: pegar estrada até Ponta Porã, para voar até Campinas, ou rodar 220 quilômetros até Campo Grande, para então alcançar Guarulhos. O que seria uma viagem de rotina transformou-se em maratona de pedágios, combustível, tempo perdido e até pernoites improvisados. Empresas amargaram custos extras, universidades deixaram de atrair congressos, pacientes sofreram com deslocamentos longos em busca de tratamento e investidores simplesmente desistiram de vir a Dourados.
Os números são cruéis: antes da interdição, o aeroporto movimentava cerca de 80 mil passageiros por ano. No período de fechamento, isso significou ao menos 320 mil embarques perdidos, com uma perda direta estimada em R$ 128 milhões só em bilhetes aéreos — sem contar o custo indireto do deslocamento forçado a Campo Grande ou Ponta Porã. O “beija-flor” prometido na época da prefeita Délia Razuk virou um urubu que rondou a cidade, lembrando a todos a distância entre discursos e realidade.
Agora, com a volta dos voos e a promessa de um novo terminal de R$ 39 milhões, Dourados tenta reabrir suas asas. Mas a lição fica: não basta inaugurar pista e mostrar maquete. É preciso planejamento, responsabilidade e respeito por uma população que ficou refém de erros e vaidades políticas por longos quatro anos.
