Há quem acorde e, diante do espelho, veja um rosto sujo de tinta — outros veem apenas o reflexo da lama que ajudaram a espalhar. A diferença é sutil: um tenta limpar-se, o outro ajeita o topete e sorri para a própria sordidez. A política do MS, essa pequena corte de província com vocação para império, sempre teve fascínio por espelhos. E o jornalismo, quando ousa ser espelho verdadeiro, costuma pagar caro por não mentir direito.
Nesses novos tempos ainda existem coronéis que trocam o chicote pela verba publicitária. Mesmo que não seja deles, mas administrada por prepostos. O curral é feito de contratos, não de bois; seu gado pasta em redações maltratadas. Quando o repórter lateja autonomia, eles o cercam com adjetivos, retaliações e aquela doce promessa de silêncio pago. Não há censura formal — há uma asfixia perfumada, vendida em tabelas de “parcerias institucionais”. O jornalismo livre vira indigente, e o bajulador vira colunista de crediário.
O mais curioso é que os coronéis, os empreiteiros desse mar de lama e o escriba de feira se reconhecem como cúmplices num teatro de moralidade. Um finge que governa, o outro que constrói, o terceiro que informa. No fundo, todos se vendem uns aos outros em suaves prestações de conveniência. O poder compra manchetes com o mesmo desembaraço com que compra brita superfaturada — e o leitor, distraído, chama isso de imprensa.
A confusão entre jornalismo e chantagem nasce quando o poderoso imagina que todo texto tem preço. Ele se julga protagonista do noticiário porque aprendeu, desde sempre, que o silêncio custa mais caro do que a verdade. Então, ao ouvir um repórter perguntar, ele não ouve a pergunta — ouve o tilintar de um suposto pedágio. É o vício de quem confunde independência com ameaça, apuração com afronta, notícia com negociata.
Mas o jornalismo verdadeiro é um organismo de autodefesa social. Quando sangra, denuncia o veneno; quando respira, devolve oxigênio. Por isso incomoda tanto: não pertence a ninguém. Não é parente de gabinete, não é funcionário de verba oculta, não é sócio de empreiteiro. É o vírus da lucidez num corpo acostumado à febre do poder. O repórter, esse ser mal pago e teimoso, não vive de adoração — vive de desconforto.
Há também o lado cômico, porque todo drama político brasileiro é, antes de tudo, uma comédia de costumes. O coronel estadual acredita ser Napoleão de paletó; o empreiteiro acha que ergue monumentos quando só empilha piche; e o escriba de feira distribui loas em notas pagas, como se a dignidade tivesse boleto. Enquanto isso, o repórter insone continua escrevendo à luz do abajur, porque sabe que a verdade não tem assessoria de imprensa.
No fim, a lama seca. Sempre seca. E quando seca, vira pó — o mesmo pó que cobre os retratos dos que se julgava eternos. A palavra, não: essa sobrevive. E é por isso que, mesmo cansado, o jornalismo continua sendo o ato mais higiênico da República. Quem confunde notícia com chantagem deveria olhar-se no espelho antes de dormir — não para pentear a vaidade, mas para perceber o que o espelho, há muito tempo, tenta dizer: a sujeira não está na página impressa.
