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sexta-feira, dezembro 5, 2025

Tarde de domingo nas memórias do tempo

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As casas comerciais pintadas de azul e branco estão fechadas, com exceção de um bar. O som da música e a vontade de comer algo chamaram minha atenção. Mais cedo, eu havia comprado café orgânico moído na hora e doces caseiros de frutas na feira da manhã.

À espera da carona, que deveria chegar no meio da tarde, saí à procura de um restaurante ou lanchonete. No meu passado de cinquenta anos atrás, os comerciantes abriam o tempo todo! Agora, muitos fecham no sábado por volta das 11h e só reabrem na segunda pela manhã. Hoje eles podem aproveitar o fim de semana. Antes, os sábados eram os melhores dias do comércio — era quando os sitiantes vinham fazer as compras do mês, ou comprar presentes para um casamento que acontecia no cartório no começo da tarde, seguido da cerimônia na igreja e da passagem no fotógrafo, para imortalizar o dia mais importante do casal.

Na busca por algo para comer, pensei na feira, mesmo que já tivesse acabado há mais de três horas. Haveria de encontrar alguma coisa por lá.

O lugar estava quase deserto. Na frente de uma pequena lanchonete, três pessoas: uma com um violão, outra que cantava, alternando com uma segunda voz, às vezes em dueto. Os três sentados em cadeiras de plástico. Uma pequena caixa de som levava mais longe seus cantos — os sons que haviam chamado minha atenção. Melodias de um passado ao qual certamente gostariam de retornar. Ou que retornavam a cada tarde de domingo naquele lugar. Essas músicas também faziam parte do meu passado — as que tocavam nos parques de diversão, onde, pré-adolescente, eu sonhava com o amor futuro, a felicidade eterna, o príncipe encantado. Sonhos.

Sentados, cada um tinha sua lata de cerveja no chão, tomando uns goles entre duas canções.
Puxei uma cadeira vazia e me acomodei no lado oposto aos músicos, para vê-los, ouvi-los e saciar a fome. Sem dizer uma palavra, sem interromper aquela intimidade. Nenhum público, nenhum lanche. Uma coxinha de massa de mandioca com carne e um pastel de queijo estavam à minha disposição. Com café à vontade, doce, na garrafa térmica verde. Cheiro de pastel frito. Uma borboleta passa, um passarinho canta do lado esquerdo.

Ouvindo o som da minha juventude. De vez em quando, entre uma música e outra, um dos três se levantava para buscar, em algum lugar que eu não via, outra lata de cerveja. O dono do bar lhes ofereceu uma pinga “das boas”. Viajei com eles nesse passado que eu mesma vivia à procura. Melodias chorosas, amores findos, “ela” desaparecida, esperanças futuras…

Protegidos do sol, de vez em quando uma brisa — que não vinha do mar, mas dos terrenos e sítios das imediações — aliviava o calor. A sacola de plástico com as alfaces de um dos cantores, sobre uma mesa de plástico, esperava, com sede, o fim do encontro.
Será que alguém o esperava em casa para o almoço?

Percebo que meus dedos estão manchados pela tinta da amora — fruta que, aparentemente, ninguém mais aprecia. Chupadas — ou comidas? — no pé. Na minha infância, suas varas eram as preferidas do meu pai para as costas do meu irmão mais velho, quando aprontava e ele achava que precisava mostrar a autoridade de um pai educador.

Uma senhora chegou. Mulher do dono do bar? Possivelmente. Conhecida dos músicos, que a cumprimentaram. Caminhou até o balcão, arrastando os pés, as pernas cobertas por meias de compressão. Foi fritar outras coxinhas para clientes futuros.

Quem eram “meus” cantores? Se os conheci, não os reconheci — a distância dos anos apagou os rostos.
Calada, ouvindo, viajando.
Num momento, um deles me perguntou se eu era da família tal.
Era, respondi.
Sem mais.

O passado virou presente ali, naquela tarde musical. De graça. Na simplicidade do meu passado. Mergulhei nele, aproveitei aquela dádiva tão simples, tão emocional, enquanto os jovens do meu passado — agora de idade — possivelmente, repousavam, exaustos depois de uma semana de trabalho ou entregues à moleza de uma ressaca após o almoço.

  • Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
    Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.
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