Diz a lenda que uma cabeça de burro foi enterrada, há mais de um século, aos pés do monumento do tenente Antônio João Ribeiro, bem ali, na praça que leva seu nome, no coração de Dourados. Desde então, o mito atravessa gerações como explicação folclórica para o que a política não consegue resolver: a suposta maldição que impediria a cidade de emplacar um governador, um senador, um nome de peso capaz de ultrapassar a esquina da própria vaidade e vencer o velho feitiço do bairrismo. A praça mudou, o coreto virou palco, os pombos continuam soberanos, as andorinhas migratórias aparecem de vez em quando, mas o bronze do herói da Guerra do Paraguai segue firme, testemunha muda da cidade que insiste em tropeçar na própria ambição.
Pois bem, eis que surge Eduardo Riedel, decidido a cutucar a superstição douradense e, quem sabe, reescrever a sina da cabeça de burro. Domingo à noite, em vez de mais um jaguané em sua segurança, para ir só com sua Mônica ao Shopping Campo Grande, tentar entender os mistérios do “Agente Secreto” — o intrigante e surreal thriller de Kleber Mendonça Filho — eis que Riedel e Mônica dão as caras, de forma discreta, acompanhados pelo prefeito Marçal Filho, em pleno Japão Fest, em Dourados, no encerramento da 22ª edição da festa que celebra os 130 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Japão. Sem pompa nem anúncio, o governador surgiu de mãos dadas com a esposa, caminhando entre barracas, provando quitutes orientais, sendo ciceroneado pelo presidente da Associação Nipo-Brasileira, o cirurgião plástico Nélio Kurimori. De boné, sorriso contido e ares de quem apenas circula, Riedel cumpria, na prática, o ritual político mais eficaz que existe: o da presença silenciosa.

“É a primeira vez que venho à Japan Fest em Dourados, e estou impressionado com a dimensão e a força da comunidade japonesa aqui no Estado”, disse, entre um pastel e outro, ecoando o som dos tambores do taiko e o burburinho de uma plateia que talvez nem esperasse topar com o governador entre uma dança e outra. Kurimori retribuiu o gesto: “Com exemplo de união trabalhamos na sociedade. O apoio do Governo do Estado é fundamental para realizar este evento, por isso agradecemos a parceria.” E Riedel, já em tom institucional, emendou: “Temos estreitado cada vez mais os laços com o Japão. Recebemos a princesa Kako recentemente, estive em Tóquio abrindo mercados para o Mato Grosso do Sul e a Rota Bioceânica vai aproximar ainda mais nossos povos.”
Mas o verdadeiro recado estava nas entrelinhas. Dourados, que há tempos se acostumou a reclamar da falta de um governador “da terra”, talvez precise repensar essa exigência geográfica. Riedel, sem precisar da certidão douradense, já se movimenta para se tornar um deles — por convivência, por laços, por convicção. Durante a campanha, quando ainda precisava se apresentar aos eleitores, soltou uma frase que virou assinatura: “Sou mais douradense que muita gente que estufa o peito pra dizer que é.” E mostrou a prova: sua carteira de trabalho, com o primeiro registro como professor na Unigran. Lembrando, a propósito, que suas propriedades rurais ficam mais próximas de Dourados do que de muitas fazendas de autoproclamados filhos da terra. Em suma, Riedel tenta fazer o que nenhum douradense ilustre conseguiu até hoje: conquistar o coração político da cidade sem precisar nascer nela.
A visita ao Japão Fest, em tom de casualidade, encaixa-se nesse projeto com a precisão de quem entende o poder do gesto despretensioso. É o mesmo Riedel que prefere aparecer a anunciar, que surge em feiras, shows e eventos comunitários com naturalidade, sem o séquito ensaiado de quem quer ser visto. É o governador que transforma a informalidade em estratégia. E é exatamente aí que mora sua “tacada de mestre”: enquanto outros marcam coletiva, ele atravessa barracas; enquanto uns discursam, ele observa; e quando fala, o faz com aquele tom de quem não precisa repetir o óbvio.
Ao mesmo tempo, há um sabor quase poético nessa tentativa de quebrar o sortilégio douradense. Enquanto os tambores japoneses ressoavam pela praça de alimentação, poucos metros dali o monumento de Antônio João permanecia impassível, com a cabeça de burro — verdadeira ou imaginária — supostamente adormecida sob o pedestal, guardando segredos de uma cidade que há décadas busca explicações para o que talvez seja apenas falta de fé em si mesma. Riedel, ao contrário, parece disposto a desafiar o mito, a provar que a maldição pode ser revertida não com rezas ou simpatias, mas com presença, afeto e um bom pastel de camarão com molho agridoce.
Se o gesto servirá para exorcizar o fantasma da cabeça de burro, só o tempo dirá. Mas o fato é que, sem discurso inflamado, sem marqueteiro cochichando no ponto e sem precisar repetir o nome na televisão, o governador deu mais um passo firme rumo à adoção simbólica pela cidade. E talvez, um dia desses, os moradores do Maxwell ou do Jardim Ouro Verde se deparem com um cidadão “parecido” com o governador, andando a pé sob o sol, conferindo a “buracaiada” sendo coberta com a capa asfáltica prometida. A cena, se acontecer, terá o mesmo sentido da aparição no Japão Fest: simples, despretensiosa, quase banal — e por isso mesmo política no melhor sentido da palavra.
Porque, no fim das contas, a verdadeira tacada de mestre de Eduardo Riedel é essa: parecer que não está jogando, enquanto, aos poucos, vai virando o jogo — e talvez, quem sabe, até desenterrando a cabeça de burro da Praça Antônio João.
