Na década de 1970, a Rádio Clube de Dourados reinava absoluta. Sua sede, nos altos da rua Ciro Melo, era conhecida como “senadinho” — e com razão. Era para lá que convergiam políticos, empresários, jornalistas e curiosos, todos orbitando aquele centro gravitacional onde o que acontecia na cidade e no estado reverberava pelas ondas médias dos 1460 kHz, como proclamava orgulhoso o prefixo. Mas o que realmente importava não era o que ia ao ar nas duas edições diárias do Fatos e Notícias, nem nos boletins de hora em hora. O ouro estava nos bastidores. Como no dia em que tivemos que esconder o então deputado Sérgio Cruz deitado na carroceria de uma caminhonete para evitar que o vereador Moacir Barreto de Souza (o Lamparina) lhe aplicasse uma correção física — e isso depois de ele já ter levado uns petelecos do ex-deputado Roberto Djalma Barros, outra vítima da língua afiada do deputado, que, aliás, começou a carreira como radialista na mesma RCD. Tempos de rádio quente, política quente e pavios curtíssimos.
Em meio a tudo isso, brilhava — ou faiscava — uma figura que era, ela própria, um patrimônio imaterial da casa: Aparício Pavão, o Beijinho. Um daqueles personagens que não se inventa; nasce pronto. Zelador de estatura miúda, rastelo sempre à mão para servir de apoio enquanto se fingia de invisível nas conversas alheias. Jeito manso, olhar enviesado, pensamento torto daqueles que surpreendem. Chapéu de aba larga jogado para trás, sorriso miúdo, esperteza que não precisava de diploma. Circulava pelo quintal da emissora como quem tem credencial vitalícia. Entrava nas rodas de conversa dos patrões sem pedir licença, e ninguém tinha coragem de mandá-lo embora. Ouvia tudo — intrigas, promessas, fuxicos — e, quando percebia contradição, ajeitava o chapéu, levantava a cabeça e lançava seu veredito: “E o boi?”, antes de explodir numa gargalhada que denunciava a verdade: Beijinho entendia muito mais do que fingia.
Pois não é que agora, na iminência de uma dessas rebordosas que insistem em tirar o sono dos poderosos da política, lembrei-me justamente do boi de Beijinho? Meu filho caçula, Dr. Felipe Torquato Melo, mudou-se para um apartamento cuja sacada, se o velho senadinho ainda existisse, permitiria ouvir todas as inconfidências políticas da cidade. A lembrança veio por causa de um detalhe doméstico: minha nora, Laís Morales Torquato, tem um gatinho tão atento quanto o velho zelador da Rádio Clube. O nome do bichano: boi. E, como Beijinho, vive infiltrado na sala, acompanhando nossas conversas políticas com uma impressionante solenidade felina.
O gatinho contemplando a sacada me fez imaginar quantas vezes o pupilo de Jorge Antônio Salomão teria invocado seu próprio “boi” diante de certas fofocas políticas que agora ressurgem reeditadas nas redes sociais. O olhar lânguido do boi de minha nora parecia carregar a mesma consciência silenciosa do antigo funcionário da rádio — aquele que, mesmo sem qualquer instrução, sabia exatamente onde estavam enterrados os segredos.
E talvez o boi saiba mesmo de alguma coisa. Porque desta vez não mugiu: urgiu. Entrou no brete em forma de dossiê, para cair na redação do site Pauta Diária com a promessa de abalar estruturas: documentos, áudios e vídeos apontando para um suposto esquema de corrupção organizado dentro de uma associação que funcionaria como uma central subterrânea de propinas. Pelas peças do quebra-cabeça, servidores de alto escalão e figuras políticas influentes atuariam como operadores e beneficiários, gerindo negociações cifradas, repasses discretos, conversas que fariam um profissional do ramo suar frio.
Embora ainda não haja movimento policial oficial, o conteúdo seria explosivo. Às vésperas das eleições de 2026, qualquer fagulha é capaz de incendiar alianças inteiras — e o material nas mãos da reportagem parece mais um maçarico do que uma fagulha.
Entre os métodos atribuídos ao grupo, um se destaca pela criatividade sinistra: atrasar pagamentos a empreiteiras até que elas abandonem contratos, abrindo caminho para relicitá-los sob medida para empresas “amigas”. Técnica velha, mas sempre útil nos subterrâneos da política matogrossulense.
Diante da iminência de novas Uragano, Lama Asfáltica ou Coffee Break, é natural que algumas eminências percam o sono. Até mesmo as eminências pardas. Veja Sérgio de Paula, por exemplo — que, apesar de sua trajetória controversa como fiel escudeiro de Reinaldo Azambuja caminha com segurança rumo à indicação, pela Assembleia Legislativa, ao Tribunal de Contas. Pode até garantir 23 dos 24 votos da Casa. Mas, mesmo assim, sempre sobra aquela pulguinha atrás da orelha. Porque unanimidade demais, em política, costuma significar apenas uma coisa: alguém está com medo.
Numa hora dessas, se Beijinho estivesse vivo apareceria na porta da redação de Fatos e Notícias, rastelo na mão, fingindo não ouvir nada, mas ouvindo tudo. Esperaria a primeira contradição, o primeiro silêncio culpado. E então, com a sabedoria dos que entendem sem estudar e enxergam sem precisar subir numa cadeira, soltaria seu veredito:
“E o boi?”
E gargalharia — aquela gargalhada que não denuncia, mas condena; não absolve, mas expõe; não explica, mas desmascara.
Porque é exatamente isso que faz as eminências perderem o sono: não é o dossiê, não é o escândalo, nem o risco eleitoral. É o medo de que, atrás de cada porta, atrás de cada sacada, atrás de cada gato curioso, atrás de cada jornalista atento… surja de novo um Beijinho perguntando “e o boi?” — e gargalhando porque sabe das coisas.
