O distrito de Picadinha viveu no último sábado um desses instantes que fazem parecer que o tempo dá uma pausa para ver o que os humanos estão aprontando. A terra de Abílio Ferreira, Albano José de Almeida, Manoel Garcia e Dezidério de Oliveira, quase sempre relegada ao rodapé da história, despertou como a Macondo de “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Marquez, que, de repente, resolve provar que existe. A chegada do asfalto, promessa que vinha atravessando décadas e campanhas como um fantasma inconveniente, desembarcou enfim naquele cenário de bolicho antigo, poeira afetiva e árvores que teimavam em esconder tudo, até a própria comunidade.
Antes, Picadinha era um rumor. Quem passava rumo a Itahum mal percebia seu sopro de presença, como se fosse apenas uma sombra vegetal. Agora, com a rotatória recém-construída pelo governo e a faixa de asfalto desenhando um corte limpo no mato, o distrito ganhou até ares de cartão-postal improvisado. Uma espécie de milagre topográfico que lembraria os velhos exageros de Gabo, não fossem as testemunhas vivas jurando que nada ali foi invenção literária — apenas obra pública, esse fenômeno antes de Riedel e Barbosinha tão raro que chega a provocar incredulidade quando aparece.
O próprio governador, em seu discurso, numa cerimônia sem protocolos, tratou de lembrar que fé e ceticismo convivem no eleitor como duas metades de mesma criatura. E quem melhor para representar essa convivência do que dona Alzira Batista Gangorá, moradora antiga e alma crítica da Picadinha? Ela foi quem, em 2022, deu ao então candidato uma bronca que os ventos ainda carregam: “Isso é só pra ganhar nosso voto. Na eleição passada foi a mesma coisa: montaram acampamento, trouxeram máquina, prometeram o mundo. Passou a eleição, sumiram todos”. A sinceridade dela cortava mais fundo que qualquer facão de pioneiro, e talvez por isso mesmo o governador tenha feito questão de reencontrá-la, abraçá-la e, de quebra, contar ao ContrapontoMS que a cobrança valeu — ou, quem sabe, doeu o suficiente para garantir cumprimento de promessa.
Se havia incredulidade, ela evaporou no aroma do costelão monumental e no brilho do chope gelado servido como oferenda republicana. O povo celebrava como quem celebra o improvável, enquanto Riedel, ainda colado a dona Alzira, repetia que promessa feita é promessa paga. Não havia pompa, nem necessidade dela. Bastava o chão novo, escuro, macio, atravessando o velho arvoredo como se dissesse: “Agora vocês existem, oficialmente”.
Em tempos de desconfiança generalizada, Picadinha virou o tipo de lugar onde o realismo mágico encontra o dever cívico. Porque, por maior que seja a festa, por mais gelado que estivesse o chope, a grande atração do dia foi outra: ver um governo cumprir aquilo que disse que faria. Uma cena tão rara que quase parece ficção.
E se García Márquez pudesse narrar a manhã douradense, talvez dissesse que, às vezes, basta um pouco de verdade para que um povo inteiro volte a acreditar. Aqui, porém, ficamos com a versão local, menos poética e mais contundente: quando o fio do bigode não arrebenta, até o asfalto chega.
