Quase meio século antes de o Congresso aprovar o Marco Temporal e reacender conflitos agrários por todo o país, um guarani-kaiowá de Dourados já havia antecipado, palavra por palavra, a tragédia que ainda vivemos. Era julho de 1980, em Manaus. Diante do Papa João Paulo II, Marçal de Souza, o Tupã-Y, ergueu a voz que representava não apenas os povos do Centro-Sul, mas toda a nação indígena brasileira.
Seu discurso — hoje documento histórico — falava de invasão, espoliação, morte de lideranças, confinamento, silêncio e omissão estatal. Nada do que denunciou foi resolvido. Muito do que alertou se agravou. E tudo o que temíamos naquela época voltou ao debate institucional exatamente nesta semana.
Seu apelo, dito com a força de quem carrega a história na carne, ecoa como profecia:
“Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, Santo Padre — o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas.”
O Papa ouviu.
O mundo ouviu.
O Brasil — não.
Marçal falava da aldeia Jaguapiru-Bororó, ali mesmo onde nasceu o insubordinado que faz este contraponto. Ele denunciava que a terra estava ficando pequena para os povos originários e grande demais para aqueles que dela se apropriaram. Falava dos líderes assassinados “friamente”, citando Kaingang Pankaré, morto por defender território — exatamente como ele próprio seria morto três anos depois, em 1983, executado por denunciar invasões.
Nada mais simbólico — e mais trágico — do que isso.
Enquanto Marçal pedia justiça ao Papa, os mesmos grupos que se beneficiaram da violência no campo estavam se fortalecendo politicamente. Enquanto ele denunciava espoliação, escrituras duvidosas se multiplicavam, e processos judiciais eram engavetados. Enquanto ele dizia “somos uma nação espoliada”, o país se preparava para décadas de litígios intermináveis.
A verdade é dura, mas simples: nada muda porque o Brasil não quer mudar. O que mudou nos 45 anos desde aquele discurso?
— As terras continuam invadidas, as demarcações continuam paradas, os assassinatos continuam, os conflitos continuam, e agora o Marco Temporal tenta transformar em lei aquilo que sempre foi prática: excluir quem estava aqui antes.
Se Marçal reencarnasse hoje encontraria o país exatamente como o descreveu — mas piorado. A Reserva Indígena de Dourados continua espremendo milhares de vidas em pouco mais de 3.500 hectares. Fazendas vizinhas seguem em litígio eterno. Crianças seguem crescendo confinadas, adultos seguem morrendo cedo, lideranças seguem recebendo ameaças.
E o Estado brasileiro? Segue repetindo a mesma resposta: omissão disfarçada de processo judicial.
O relatório entregue ao CNJ nesta semana, pelo professor da UFGD Tiago Botelho, nada mais faz do que recolocar o tema no lugar de onde nunca deveria ter saído: o centro da agenda institucional.
Mas há uma diferença essencial entre 1980 e 2025: naquela época, o alerta vinha de um indígena diante do Papa. Hoje, vem também de dentro do sistema de justiça — de pesquisadores, juízes e promotores, acadêmicos, instituições internacionais.
A pergunta que fica — e que Marçal de Souza fez antes de todos nós — é simples, direta e ainda sem resposta:
Por quantos anos mais os povos originários terão de pedir aquilo que lhes pertence por direito, história e sangue?
Quando Tupã-Y disse ao Papa que “a nossa nação está desaparecendo”, ele não falava por metáfora. Falava por estatística. Falava por experiência. Falava por urgência.
Quarenta e cinco anos depois, sua mensagem não apenas permanece atual —
ela é indispensável. E o Brasil, que tanto gosta de celebrar santos, heróis e mártires, continua ignorando o seu.
Marçal de Souza, Tupã-Y, advertiu o mundo. O mundo ouviu. A pergunta é: e o Brasil, quando vai ouvir?
